EDUCAÇÃO E RESISTÊNCIA
Neta da professora Celina Guimarães
Viana, primeira mulher a votar na América Latina, Carla Coscarelli é,
principalmente, uma das linguísticas mais importantes do Brasil. Referência em
leitura digital, ela conta um pouco das lembranças da avó e bastante sobre suas
ideias para melhorar a Educação no Brasil.
É provável que o
nome Carla Coscarelli seja desconhecido por grande parte da população
mossoroense e potiguar. Se decidir usar o outro sobrenome dela, Viana, é
possível que algumas pessoas façam alguma relação familiar, mas uma grande
maioria terá mais clareza quando eu disser que se trata de uma neta de Celina
Guimarães Viana, a primeira eleitora da América Latina.
A mesma confusão aconteceria ao contrário se este texto estivesse direcionado para
pesquisadores da área de Letras, pois Carla é uma referência nacional no
letramento digital e, apesar de nunca ter vindo a Mossoró, é bem conhecida por
estudiosos dessa região.
A primeira vez que soube da existência dela foi durante o lançamento da
plataforma Celina, em março deste ano, pelo jornal O Globo. O espaço traz
reportagem sobre a personalidade e entrevistas com duas de suas netas, Carla e
Gina, que são irmãs.
Em maio deste ano, em viagem a Belo Horizonte, a visitei no charmoso bairro
Bandeirantes, na Pampulha. Cheguei à sua casa por volta das 16h, acompanhado de
Regiane. Fomos recebidos por ela, Fábio Passos, seu namorado, sua mãe, Neide, e
três simpáticos cães. Mais tarde conhecemos mais pessoas.
A primeira surpresa foi a gentileza de Carla. Com aspecto de bom-humor
orgânico, nos recebeu como conterrâneos apenas pela relação familiar dela com
Mossoró. Alguns amigos em comuns nossos a aproximaram imediatamente de Regiane
que também é pesquisadora das Letras.
Chamou atenção nas primeiras conversas o desconhecimento da dimensão do nome de
Celina para Mossoró. Considerada como uma espécie de heroína local, ela é, com
exceção da história já conhecida e das grandes reportagens e referências,
apenas “dona Celina”, como citou uma tia de Carla que chegou mais tarde à sua
casa.
Até questionei se eles tinham esta dimensão e, sendo muito sinceros, disseram
que não. Sequer sabiam que existe uma escultura dela no centro de Mossoró. Também
desconheciam as encenações do Auto da Liberdade e Chuva de Bala no País de
Mossoró que trazem Celina Guimarães como personagem importante.
Apesar de tudo isso, não fui ali em busca da neta de nossa eleitora primeira,
apesar de ser impossível desviar esta referência. Queria conhecer um pouco mais
sobre a pesquisadora Carla Coscarelli, tão citada e respeitada no mundo
acadêmico.
Em seu escritório cheio de informações, livros e lembranças, me deparei com o
famoso álbum de Celina Guimarães e Elyzeu Viana. Folheei página a página com
enorme cuidado devido à fragilidade do objeto. Ali encontrei o casal elegante
que redefiniu a história do Rio Grande do Norte, tanto na resistência em
relação aos padrões sociais rígidos de sua época, quanto na preocupação em
desenvolver a educação deste estado.
Entre as fotografias observadas, a mais importante delas: o registro do voto.
Em excelente qualidade, dá para ver Celina depositando aquele que,
historicamente é considerado o primeiro voto feminino no Brasil devido às
circunstâncias de registro e publicidade. Como se sabe, o sufrágio de 1928 não
foi contabilizado, pois a mulher só pode votar mesmo em 1932. Mas isso não
mudou as circunstâncias daquele acontecimento, hoje estabelecidas pela luta em
favor dos direitos femininos.
Uma das últimas fotos pouco conhecidas de Celina não está no álbum. De corpo
inteiro, ela aparece ao lado de uma loirinha simpática. É Carla, ali por volta
dos sete anos de idade, período que guardou as poucas lembranças da avó.
– Lembro dela
jogando paciência. Tinha um baralho de gatos. Lembro dela no quarto, sentada
jogando sozinha. Lembro também dela com uma vizinha conversando numa mesa
redonda na sala.
Dona Neide diz que
Celina tinha fama de tomar decisões em casa e que Elyzeu Viana costumava
atender suas orientações. Esse perfil põe por terra qualquer suposição de que o
direito ao voto tenha sido motivado pelo marido e se o foi, certamente, teve
origem no comportamento dela, sempre à frente do seu tempo.
Carla não conheceu
o avô, falecido quatro anos antes de ela nascer, mas dele guarda impressões
afetivas muito fortes. A postura nas fotografias, a informação de que gostava
de literatura, coisa que passou para o filho, Pedro Viana, lhe remete a
possibilidade de ter sido “um cara bacana”. Pedro Viana é o único filho do
casal Celina e Elyzeu. Foi adotado em Teófilo Otoni, onde Elyzeu trabalhou como
promotor depois de deixar o RN na década de 1930.
Essa relação com o avô se dá pelo gosto de Carla pelas Letras, obviamente. Mas,
possivelmente seja o magistério que mais une essa família. Desde criança, Carla
tem a sala de aula como perspectiva e isso se estabeleceu em sua vida de
maneira tão natural que parece coisa arrumada pelo universo. E ela tinha outras
opções.
Carla Viana nasceu no dia 8 de outubro de 1964 em Belo Horizonte, lugar de onde
nunca saiu. Filha da professora Neide Lapertosa Viana, hoje com 78 anos, e do
médico anestesiologista Pedro Wilson Viana, 88, é a terceira a nascer de uma
família de quatro filhos: Gina (professora), Júlio (professor) e Sandra
(designer de interiores).
Apesar da boa condição da família deixada pelos avós e conquistada pelo pai,
médico, todos estudaram em escola pública, com exceção apenas do ginásio.
A primeira escola de Carla foi a estadual Pandiá Calógeras. De lá, saiu para a
Escola Municipal Marconi e só então para o Colégio Pio XII, de freiras, onde
fez o magistério. Em 1984, aos 20 anos, entrou no curso de Letras na UFMG.
Durante muito tempo, estudou inglês no Modern American Institute (MAI) e lá
mesmo conquistou o primeiro emprego como professora. O interesse pela pesquisa
começou na graduação, na iniciação científica. Desde então, não largou mais as
investigações e a contribuição para a ciência.
Casou-se com o administrador Leonardo Andrade Coscarelli em 1989, com quem tem
uma filha: Bárbara Viana Coscarelli, hoje com 21 anos. Bárbara estuda Artes
Plásticas na Escola Guignard, da Uemg. Carla e Leonardo se conheceram em um
curso de vocal, pois a música é sua segunda paixão dela que estudou violão
erudito. Os dois viveram juntos por 14 anos e hoje são bons amigos. Há sete
anos, Carla namora o empresário Fábio Passos Fenatti.
Em 1991, entrou no
mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UFMG. Neste
período, começou a trabalhar no Centro Universitário de Belo Horizonte
(UniBH). Em 1995, ingressou no doutorado do mesmo programa e, no ano
seguinte, passou no concurso para o corpo docente da UFMG, onde hoje é professora
titular.
Depois disso, fez
dois pós-doutorado: em Ciências Cognitivas, pela University of California San
Diego (EUA), concluído em 2005, e em Educação pela University of Rhode Island
(EUA), concluído em 2014.
Em 23 anos de
trabalho na federal mineira, Carla construiu uma carreira ambiciosa e
significativa para a educação nacional. Ela trabalha tentando entender como as
pessoas leem, como aprendem a ler e como entendem o que entendem.
"Inferência"
é um marcador importante em sua pesquisa, pois esclarece o grau de conhecimento
percebido pelo leitor paciente. Desde o mestrado vem observando como esta ação
se consolida nos leitores a partir de leituras tradicionais, mas nos últimos
vinte anos se destacou ao ser uma das primeiras no país a pesquisar como as pessoas
leem no computador.
São dezenas
de capítulos de livros publicados de suas pesquisas e orientações ao longo
deste tempo. Entre os mais conhecidos estão “Letramento Digital”, em parceria
com Ana Elisa Ribeiro, e o mais recente “Tecnologias para Aprender”. Seu
trabalho impresso mais conhecido, no entanto é o famoso “Livro de receitas do
professor de português”, que escreveu sozinha.
As universidades de
nossa região estão cheias de colaboradores de seus trabalhos, entre eles
destacam-se Júlio Araújo, Messias Dieb, Vicente Lima Neto, Elaine Fortes,
Eduardo Junqueira, Áurea Zavan, entre outros. Colaboradores e amigos, já que a
coisa que mais gosta de fazer, segundo ela própria, é amigos.
Carla luta também
por mudanças na Educação. Para ela, as escolas do Brasil precisam se
transformarem em ambientes agradáveis e os currículos mudarem a possibilidade
do ensino rígido e tradicional para algo que interesse ao aluno. Sua crítica
vai ao encontro de mudanças significativas que têm sido feitas na Europa e que
oferecem resultados extraordinários.
Este debate, mais a
questão política envolvendo a educação brasileira, vitimada por discursos
extremistas, foi base para nossa entrevista. Oportunidade para conhecer um
pouco mais de seu pensamento e ideias em favor de uma educação progressista e
qualificada para alunos e professores.
– Como você vê
essas novas discussões sobre as humanas?
– Isso me dá um
medo terrível, porque eu acho que as humanas são o fundamento de tudo. É na
filosofia, na sociologia que a gente entende o ser-humano. Se a gente não pensa
sobre o ser-humano o resto todo se destrói. Eu não tenho a menor dúvida. Você
não consegue ser engenheiro, não consegue ser médico se você não tiver uma base
humana em sua formação.
– E essa coisa de
cortar recursos do Ensino Superior para investir no Ensino Básico?
– O Ensino Superior
forma o profissional que vai para o Básico. Se você corta ali está “dando um
tiro no pé”, no popular. Você está rompendo um círculo que é fundamental. E,
além disso, a gente tem nas universidades a pesquisa. Uma grande porcentagem da
pesquisa de ponta brasileira é feita nas universidades. Se você tira pesquisa
de ponta em seu país, terá de comprar pesquisa de outros lugares. Então, assim,
é uma escolha: você quer comprar pesquisa cara feita pelos outros lá fora ou
você quer desenvolver a pesquisa aqui? Um exemplo que gosto dar é o da dengue.
Você acha que a Alemanha vai pesquisar dengue sem ter dengue? Não! Vai
desenvolver vacina e remédio pra dengue? Não! Então, se a gente não cuidar da
dengue aqui, vamos continuar morrendo de dengue. [...] A gente não tem de
cortar dinheiro da Educação, a gente tem de pôr mais dinheiro na Educação.
– Então isso tem
impacto direto também na economia?
– Certamente! A tecnologia
que a gente não desenvolve aqui vai ter de trazer de fora. E traz a preços
muito altos. Por exemplo, a gente pega o minério aqui, manda ele bruto pra
algum lugar e compra o produto daquele minério beneficiado. Então, a gente paga
pelo nosso produto. Ao invés de a gente desenvolver o nosso minério aqui, a
gente compra depois caríssimo. A gente vende barato porque é material bruto e
compra caríssimo porque é material manufaturado.
– O Brasil também
não está bem posicionado no PISA (Programa Internacional de Avaliação de
Alunos) em relação à leitura, que é sua área. Como se resolve este problema?
– Olha, eu
participei desde o primeiro PISA. A gente mede, mede, mede, mas as ações pra
resolver não acontecem. A gente sabe que os brasileiros têm dificuldade de ler
tabelas, de ler gráficos, infográficos, que são materiais que estão aí nas
revistas, nos jornais, na internet, mas a gente não faz nada para resolver
isso. Por quê? Porque a gente fica tentando uma educação... eu vou falar assim:
careta. A gente quer que o menino saiba análise sintática, que o menino decore
verbo, tabuada... não que não tenha de decorar tabuada, tem, mas ele tem de
entender que matemática é essa, que língua é essa. Não adianta você ficar oito
anos ensinando análise sintática sem ensinar leitura e produção de texto. Esse é
um grande erro da educação brasileira e eu acho que a gente tem de soltar um
pouco as amarras do que é ensinar português, matemática, procurar um ensino
mais pautado na vida das pessoas, um ensino mais reflexivo que é exatamente o
que o governo não quer fazer hoje.
– Hoje voltamos a
debates que já se imaginava superados: voltar a uma educação mais tradicional
ou estabelecer formas educacionais mais inovadoras. Como devemos olhar para
esta discussão e o que podemos pensar sobre o futuro da educação?
– Olha, tudo que eu
já li, já estudei, tem umas coisas que precisam ser vistas. Por exemplo a
Finlândia, o que a Finlândia fez? A Finlândia é o top de linha no PISA, né? O
que ela fez? Liberou a internet! Todas as escolas têm internet, tudo tem
internet pros meninos. Os meninos trabalham com projetos, trabalham com equipes
para solucionar problemas. E quando você tem um problema pra resolver você vai
ler, vai pesquisar, vai pensar! Então, assim, isso é muito diferente de colocar
o menino pra fazer análise sintática. Pegar um texto e falar: cadê o sujeito,
cadê o predicado? Precisamos pensar uma educação mais interessante.
– A discussão é
muito mais curricular, então?
– E social. Não é
só o método que importa - fônico ou global, apesar de eu ter preferência pelo
método global. Mas a escola tem de ser o todo. Que comunidade é essa? Quais são
as demandas dessa comunidade? O que está acontecendo com essas pessoas que vêm
pra cá? Tá bom, tem muita droga ali... Como que eu vou lidar com esse ambiente
de droga dentro da escola? De repente, o pai do menino é um traficante, o que
que eu vou falar? Que todo traficante é marginal e blá, blá, blá? Então, você
olha esses casos que precisam ser pensados e o professor precisa desse suporte.
O suporte de um aluno que tem problema mental, o suporte de um aluno que é
surdo. Porque, de repente, junta todo mundo em uma sala de aula e diz que é
inclusão. É lindo, mas o professor precisa desse suporte. Como saber lidar com
o aluno que é bipolar, que é surdo, é cego, né? A escola precisa ter gente lá
pra ajudar.
– A escola poderia
salvar mais pessoas?
– Eu acho que ela
salva! O governo de Minas, recentemente, fez um grande erro que foi acabar com
a escola em tempo integral. Esses meninos, que muitas vezes vivem em lugares de
risco, ao invés de permanecerem na escola, vão voltar pra rua. Ou seja, os
meninos viram trombadinha, vão pras drogas, pra prostituição. Não digo que a
escola salva todo mundo, mas que ela ajuda e tira muito menino em situação de
risco, isso tira.
– Qual é o seu
lugar de luta nesta luta?
– Minha luta diária
é por uma sala de aula legal. Sabe aquela sala de aula que o menino entra e
fala assim: pô, aqui é um lugar bom, é aqui que eu quero tá, aqui é legal, aqui
eu me divirto, aqui eu aprendo, aqui – a palavra da moda – eu me empodero; aqui
eu sinto que sou valorizado, aqui eu tenho amigos, tenho professores que me
olham com carinho, sabe, que quer que eu seja uma pessoa bacana, que quer que
eu me dê bem e tá me ajudando a melhorar. Que consiga perceber que a comunidade
dele tem mil coisas legais, mil coisas interessantes. Então eu acho que é isso.
Todo dia eu falo com meus alunos, porque eu formo professores, então eu falo:
gente a sala de aula tem de ser um lugar legal, divertido, a gente precisa rir
aqui dentro, a gente não tem de ser carrancudo. É isso.
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