A FORÇA DA BORBOLETA


Kalliane Amorim é poetisa de estética clara, uma das poucas que conseguem fazer da simplicidade dos acontecimentos metáforas poéticas marcantes. É esta sutileza que a torna grande e necessária dentro da cena literária do Rio Grande do Norte.

A delicadeza da vida esconde uma força incrível. Borboletas são vistas como seres frágeis, mas existem há mais de 50 milhões de anos e conseguem voar até três mil quilômetros entre para fugir do inverno. Alguns acreditam que as borboletas são a personificação de uma metáfora espiritual, animais de energia. De fato, pois é do sol que elas tiram a força que precisam para voar e polinizar a natureza. Algumas pessoas também têm asas e mobilizam a vida com ações, sorrisos ou poesia. Sem elas, as coisas seriam mais duras e teríamos menos expectativas.
Para mim, a elegância de Kalliane Amorim se assemelha a de uma borboleta. E ainda que toda elegância pareça carregar certa fragilidade, esconde em suas linhas sutis uma determinação que transforma o mundo. Acho que nos parecemos em muitas de nossas histórias, sobretudo nas lembranças de infância. Pensei em pedir a ela para falar um pouco desse período, mas há muito já tinha lido sua resposta:
– Quando me faltavam brinquedos/ eu girava em torno de mim/ na sala estreita lá de casa./ Menina, olhe a cabeça na parede!/ E eu ria tanto porque tudo girava/ pra acompanhar minha dança – / corda bamba no piso cor de barro. / Era esse o torto ensaio dos voos desenhados na anônima solidão/ de minha infância.
Este poema, publicado em 2015, nos aproximou para sempre. A anônima solidão de minha infância é o meu maior paradoxo.
Kalliane Sibelli de Amorim Oliveira nasceu em 14 de junho de 1982, em Umarizal, no médio Oeste potiguar, e logo em seguida veio para Mossoró, onde os pais já moravam. Filha da costureira Apolônia Gurgel de Amorim e do motorista José de Paiva Amorim, teve uma infância simples dividida entre a cidade e a alegria rural da fazenda Camponesa, dos avós maternos. Em Mossoró, estudou nas escolas Disneylândia, Abel Freire Coelho e União Colégio e Curso. Cursou Letras na UERN, onde também fez especialização em Leitura e Produção Textual e mestrado em Letras.
Como professora, deu aulas na Escola Disneylândia, no Colégio Dom Bosco e no Ceamo, na Escola Estadual Moreira Dias e, desde 2010, é docente do IFRN. Casada com o contabilista Valdeque Júnior, é mãe de Vinícius, de 5 anos.
O seu primeiro poema foi escrito aos 13 anos, numa aula de redação: “Coisa de adolescente”, diz, mas reconhece a importância desse momento, com a importante participação da professora Iale, de Língua Portuguesa, que a incentivou a continuar escrevendo.
– [...] parece, pelo menos para mim, que o poema estava pronto em algum lugar esperando apenas um despertar. É curioso porque, às vezes, a impressão que tenho é de que não fui eu quem escrevi. De fato, creio haver algo de divino em produzir arte.
Decerto ela tem razão. A arte é um espelho inverso no teatro do mundo. Na vida de Kalliane isso foi se materializando aos poucos. Em 2005, participou do Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães, promovido pela Fundação José Augusto. Enviou seis poemas que foram classificados em primeiro lugar e publicados numa edição da Revista Preá.
Mas esta não foi sua primeira publicação. Em 2003, já tinha se lançado Outonos (Fundação Vint-un Rosado). Em 2006, publicou Exercício de Silêncio (Queima-Bucha) e em 2015, o que para mim é sua maior obra: Relicário (Sarau das Letras). Além disso, participou das coletâneas do Café & Poesia e dos Exercícios Literários, volumes 1 e 2.
Entre seus autores de cabeceira estão Cecília Meireles, Kahlil Gibran e Rabindranath Tagore. É possível encontrar nos poemas de Kalliane a influência amalgâmica destes poetas que têm espíritos poéticos tão aproximados. A sutiliza nas palavras, a exatidão nas imagens desenhadas com tamanha singeleza, a poesia materializada em palavras na composição do poema a partir de toques sutis; frases leves desprovidas de qualquer prepotência acadêmica, mas com uma força semântica beirando o espiritual. Tudo isso faz de Kalliane uma poetisa necessária.


A religião é outra parte que se constitui em sua vida. As leituras da Bíblia Sagrada e das obras completas de Santa Teresinha do Menino Jesus, Santa Teresa D'Ávila e São João da Cruz, também a liberta de certas vaidades.
Atualmente, a espiritualidade, que sempre foi muito forte e presente em sua rotina, está mais acentuada, dada a experiência de lutar contra um carcinoma mamário invasivo do tipo Her2 positivo. Esta luta imensa pela vida a levou a participar da Comunidade Católica São Padre Pio, fundada por Manflinio Gomes há seis anos.
– A vivência da fé católica, nas formações acerca da liturgia e da doutrina, nos retiros e encontros, nos estudos sobre a história da Igreja, tudo isso me fez adentrar nesta fé herdada dos judeus, nesta fé que educa para a sensibilidade e propõe uma mística agregada à vida, e não separada dela, como se Deus fosse distante de nós e só pudéssemos ter acesso ao sagrado negando a materialidade das coisas. Lendo os textos sagrados, percebemos como há beleza na poesia ali registrada e como é importante desenvolvermos um espírito de atenção, de contemplação do mundo e dos acontecimentos. Nisso a fé e a poesia se aproximam, pois ajudam o homem a se despojar e a buscar o essencial no trivial. Como reflete Adélia Prado num de seus poemas, é triste olhar uma pedra e só ver a pedra mesmo. A fé nos auxilia a ver para além da superfície das coisas.
Apesar de não ter planos para publicar nada por enquanto, tendo composto alguns poemas esporádicos desde então, lançou no espaço virtual um e-book com 25 poemas espirituais de enorme relevância literária. No primeiro deles, “abismos”, ela volta a lançar-se no mundo com a mesma compreensão de si, presente em quase toda a sua obra: Há abismos de silêncio dentro de minha alma./ Somente o vento que se lança nos precipícios ecoa:/ é a tua voz ruflando as asas,/ pousando em meu ombro esquerdo,/
sussurrando-me segredos/ esquecidos numa caixa/ em que dormem meus brinquedos,/ meus brinquedos muito pobres,/ meus haveres tão escassos... [...].
O desprendimento das coisas materiais, incluindo sentimentos que assim se constituem de tanto apegados que ficamos a eles, é um brilho neste trabalho tão intimista. E este estado de clareza do estado da alma que conduziu nossa conversa, em uma entrevista que durou quase três dias.
– A vida sempre se agigantou frente a sua natureza. Seus poemas trazem uma migração circunstancial do tempo, de lembranças e de agradecimento, o que nos deixa curiosos para saber o que você viu da vida?
– Da vida, o que vi e experimentei foi alegria, prazer, medo, tristeza, ansiedade, dúvida, carência, culpa, mágoa, arrependimento, perdão, paz, gratidão, enfim, o que é próprio da natureza humana. Sinto-me imensamente agraciada por Deus, porque olho para os 36 anos já vividos e vejo que nada me faltou: o amor e o apoio da família, o alimento, a vestimenta, a moradia, a educação. Não me faltaram amigos nem situações de aprendizagem por meio das conquistas ou das perdas que vivenciei. Escrevi livros, plantei não árvores, mas roseiras, e tenho um marido e um filho com os quais aprendo a amar todos os dias. Tenho muito mais a agradecer pelo que vi e recebi da vida do que a pedir. Hoje, particularmente, procuro viver um dia de cada vez, não fico, como diria Rubem Alves, pensando e desejando ansiosamente mil coisas. Não mais, na verdade.
– Tem olhado mais para a fragilidade do tempo?
Para mim, estar vivenciando a experiência de passar por um tratamento oncológico - há seis meses venho lutando contra um câncer de mama - trouxe com mais força essa consciência da vulnerabilidade humana, da fragilidade que nos é inerente. Ainda há uma visão de que receber um diagnóstico de câncer é sinônimo de morte anunciada, muita gente ainda se refere ao câncer como "aquela doença" ou usa simplesmente as duas primeiras letras da palavra, como se fosse uma sigla, "CA". Há um medo de pronunciar a palavra, que mascara na verdade o medo da morte. Mas mesmo que estejamos bem de saúde, quem nos garante uma vida longa? Seria bom que não esperássemos passar por situações dessa natureza para nos apercebermos de nossa condição. Pensar na nossa finitude é, provavelmente, o caminho mais seguro de vivermos melhor.
– O que é um poema e o que é a vida?
– O poema é uma tentativa de dar forma linguística à vida. A necessidade humana de expressar metaforicamente suas vivências encontra no poema sua realização e também seu sofrimento, pois, como a língua se desenrola no fio do tempo, todo poema, uma vez escrito, é presença e é saudade, tem início, meio e fim. Os poemas são retratos da vida. A gente fica olhando no álbum, repetidas vezes, as fotografias, e vai lembrando, lembrando, lembrando... do que passou, do que não aconteceu, do que ainda está por vir. E a vida? Lembrei-me de Gonzaguinha agora: “ela é a batida de um coração, ela é uma doce ilusão, é maravilha ou é sofrimento, é alegria ou lamento?” Bachelard a comparava com a chama de uma vela: à medida que ilumina, consome o corpo que é seu próprio combustível, queimando até o fim ou sendo apagada por algum vento inesperado. Os textos sagrados, em sua beleza e sabedoria, dizem que a vida é um sopro divino. Um dia, quando meu filho tinha pouco mais de dois anos, perguntou-me o que era viver. Fiquei meio embaraçada com a pergunta, pensando que resposta eu poderia dar a uma criança tão pequena. Por um instante pensei que passamos mais tempo vivendo do que pensando no conceito ou no sentido da vida. Para isso, precisamos sair do automatismo em que vivemos, precisamos parar, respirar e contemplar. Experimentar o instante. E o instante é um sopro, passa.
– Quem são as personagens de seus poemas?
– Eu mesma e as pessoas com quem convivi/convivo, gente que observo no dia a dia ou que me vem à mente pela leitura de textos e imagens.
– Sua relação com sua terra, cultura e sertanidade estão em suas linhas, vistas a olho nu ou escondidas na sutileza de suas palavras. É daí que você transforma a poesia em poema?
– Creio que o afeto pelos lugares e pelas pessoas é o que se sobressai no que escrevo. Em Relicário, por exemplo, há uma parte cujos poemas são todos voltados a memórias de infância, falam de espaços específicos, como as pedras grandes próximas à barragem da Fazenda Camponesa, onde meus avós maternos moravam, e de objetos de uma carga bastante significativa, como o molho de chaves pendurado no cós da calça de meu avô ou a máquina de costura de minha avó. A isso, soma-se meu apreço pelos versos populares, curtos e ritmados. Não tenho a desenvoltura de um repentista nem sou cordelista, mas vejo que muito do que escrevo bebe nessas fontes.
– Como extrair a solidão de um mundo tão povoado?
– Em meio às pessoas, solidão só com distração. Às vezes, acontece-me estar diante de pessoas, todas conversando, e eu procuro, mesmo estando presente, me ausentar, permanecer como espectadora, observando gestos, olhares, algum objeto ou elemento da paisagem, e isso se torna matéria para reflexão e possivelmente escrita. Exercício árduo num mundo tão cheio de ruídos. Mas a solidão que se busca espontaneamente, para se estar a sós consigo, essa é sempre bem-vinda.
– Você é muito jovem e tem muita coisa para ver ainda, contudo, considerando as mudanças que atravessamos no país e na vida, dadas tantas revoluções, o que você ainda espera que a vida lhe mostre?
– Para mim e para os outros, mais espiritualidade, bondade, respeito, compreensão, justiça e verdade, com a consciência de que isso vem de dentro para fora, não é algo que está pronto e empacotado numa prateleira de supermercado nem se constrói da noite para o dia em promessas de líderes, partidos ou instituições. Constrói-se é com sentidos e intelecto bem atentos a nós mesmos e às necessidades dos outros.

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