ANDRÉ PRANDO E O CIRCO DOS PALHAÇOS




Para o bem ou para o mal, a escola é o lugar de conhecimento e definição dos sujeitos, mesmo que seja para transgredir parte do que ela ensina. Curiosamente, é isso que marca a história de André Prando, uma das novas vozes do rock nacional.

Mandei uma mensagem no WhatsApp perguntando se teria show em Vitória, ES, aquele dia e logo ele confirmou que sim. Explicou que seria algo mais intimista em um barzinho na Rua da Lama, mas que tinha tocado com toda a banda no dia anterior. Vibrei com a informação porque minha experiência não seria a mesma se diversos outros instrumentos e uma performance de palco tivesse existido entre nós dois.
Cheguei ao bar no horário combinado. Ficava a algumas quadras de onde eu estava hospedado, no bairro Jardim da Penha. Fomos a pé, Regiane e eu, cortando uma garoazinha que prometia engrossar a qualquer momento, o que aconteceu. Era uma sexta e havia chovido acima da média na capital capixaba.
No bar, quase vazio ainda, por volta das 21h, o avistei logo na entrada da parte externa. Difícil não identificar a cabeleira e o aspecto meio indiano – coisa da minha cabeça. Rocker com certeza. Me apresentei forçando uma intimidade e um jeito descolado que eu não tenho. Carregava comigo velhas impressões de ser maltratado por artistas que gosto e isso imprimia muita insegurança. Mas isso não aconteceu dessa vez.
Ficamos em pé discutindo sobre como cheguei à sua música por volta de 2015, garimpando na internet, e do contato dele com Natal e com Florizel Bicão, o cara que gravou Sérgio Sampaio em dois momentos na década de 1990, quando o “maldito” esteve no RN passando parte do que seria seus últimos dias.
Dali a pouco, anunciou que começaria o show. Nos organizamos em uma mesa próxima e esperamos o que aconteceria. Pouca gente, grande parte sequer parecia interessada ou talvez não curtisse a onda, não conhecesse o cara. Isso mudou quando ele fez o primeiro acorde.
Mais à frente neste texto, durante entrevista, André Prando diz que é preciso executar um instrumento com uma forma própria para se destacar, mas antes de ele me falar isso, eu percebi sentindo. Ao puxar os acordes da primeira música, me dei conta de o porquê ter gostado tanto de sua música desde os primeiros contatos.
O show foi dividido em dois momentos. Na primeira parte, cantou sucessos conhecidos da MPB: Caetano, Tom Zé, Mutantes, Secos e Molhados, Luiz Melodia, mas algo acontecia além do comum nas apresentações em barzinhos. Com sua forma, André suplanta as lendas e se estabelece, constata-se e torna-se autor das próprias interpretações.
Doa-se por completo, não importa se ou quem o ouve. Toca e canta antes para ele mesmo, que se respeita muito, para o músico e para a deusa. Depois os outros que lhe escutem caso tenha a condição sensitiva de sentir as ondas que se espalham pela atmosfera, enquanto se amalgama nas cordas de aço do violão, cúmplice de sua panaceia psicodélica.
A segunda parte da apresentação foi um mergulho maior, pois passou a interpretar as próprias composições e regravações de seus dois discos e o EP que gravou no começo de tudo. O que seria mais um show de barzinho foi se transformando em um concerto indelével a cada música e as pessoas já paravam na rua para assisti-lo. Dali a pouco, a calçada estava cheia de gente, o bar lotado e a galera cantando junto.
Cumpria-se assim, as premissas anunciadas. Prando é, de fato, um artista autêntico do tamanho de seus discos e, sobretudo, um ídolo acessível, tanto que, no primeiro contato pelo Instagram, dois meses antes de nossa viagem a Vitória, ele imediatamente me passou o número de seu telefone.
Conhecia sua música e agora sua fisionomia, me faltava saber um pouco mais de sua história e das motivações que o tornaram cantor, compositor e este pensador tão promissor e interessante.
André Prando Lucas da Silva nasceu no dia 8 de julho de 1990, em Vitória, capital do Espírito Santo. Filho da costureira e artesã Adalgisa Prando, que criou a família produzindo bonecas de pano e porcelana, e de José do Carmo da Silva, representante comercial, teve uma infância limitada pela própria estrutura educacional a que foi submetido.
Ele é o caçula da relação entre Adalgisa e José do Carmo, que tiveram primeiro Victor Hugo, um irmão importante na carreira de Prando. Seu José casou-se novamente e dessa nova relação teve outros dois filhos: Bruno e Gabi.
A parte mais interessante em sua história de vida é que toda a sua construção social e artística é proveniente de sua necessidade de libertação das regras conservadoras e do imperativo de se opor à educação da escola adventista onde estudou. Foi matriculado lá porque seu pai tinha desconto, embora não fosse religioso. Apesar de prestigiada, as metodologias empregadas e o currículo da escola, afetado pela doutrinação religiosa, colocava o jovem Prando à prova com grande constância.
A impressão, contradizendo as teorias que defendo, é que Prando nasceu com algo de inato, tanto para o pensamento quanto para a arte, numa coisa estranha, muito próxima daquilo que chamam de “vocação”. Isso é perceptível ao se descobrir que, apesar da limitação dos métodos educacionais a que foi submetido, ele transgrediu. Como disse na música “Choro Plebeu”, “quebrou a cara, mas quebrou e foi além”.
Ir além é um contexto conectivo à polissemia de sua realização. Apesar do estereótipo largado, meio vagabundo, tem cara e comportamento de nerd. Essa contradição lhe permitira fundar uma carreira trilhada na experimentação e na abertura voluntária de portas, ao mesmo tempo em que manteve estabelecido o contrato social com o mundo regular. Por isso, estudou Segurança do Trabalho no Instituto Federal (IFES) e entrou na UFES para o curso de Desenho Industrial.
Acontece que, desde pequeno, Prando gostava de desenhar. Ver sua mãe mexendo com artesanato abriu em sua cabeça a possibilidade da arte. Então, ainda cedo, tornou-se um design, o que lhe permitiu alguns empregos. No entanto, a paixão pela música sempre foi maior e, por este motivo, na metade da primeira faculdade, fez reopção de curso e entrou na faculdade de música, onde se graduou.
Essa não foi uma decisão aleatória, pois o canto é um acontecimento tão natural em sua vida que ele se perde na explicação. Lembra da mãe que ouvia muito rádio, mas é seu irmão, Victor Hugo, que o introduz no meio em duas ocasiões. A primeira delas, e mais curiosa, é que Victor gostava de assoviar as trilhas sonoras dos jogos de videogame e Prando, que também adora jogar, seguiu o exemplo e fazia dueto com ele.
Mais tarde, Victor o convidou para assumir a posição de guitarrista na banda Hi-Sky, que tocava rock japonês para essa galera que gosta de anime e coisas da tradição jovem daquele país. Aliás, foi em um desses eventos que Prando cantou para um público pela primeira vez. Era um Karaokê, mas os elogios serviram de confirmação de que ele tinha condições de usar a voz para tal atividade.
Foi ainda na escola que ele se interessou por instrumentos musicais. Muitos colegas tocavam instrumentos e cantavam rock. Ele decidiu estudar violão sozinho, usando o método das revistinhas de cifras, com intensões mais ambiciosas: musicar suas composições.
É que antes da música veio a poesia. Nas aulas de literatura, apaixonou-se pela metrificação dos sonetos. O amigo Silas Cordeiro gostava de poemas e apresentou a ele algumas formas, principalmente a perfeita simetria musical das estrofes de Augusto dos Anjos.
Tocar, para André Prando, passou então a ser uma forma de musicar os poemas que começou a escrever. Além do gosto pela poesia, viu nesta escrita uma forma de contravir aquilo que a escola lhe enfiava goela abaixo com sua doutrina bíblica.
– Eu sentia uma vontade de transgredir tudo aquilo que me era apresentado, aquilo não me cabia. Eu escrevia sobre as coisas da bíblia também, sempre contestando.
Desobedecer se tornou característica de seu trabalho, mas não só isso, de seu modo de ser, de viver e de agir no mundo.  Agir contrário a escola e a seus padrões era uma necessidade e Raul Seixas, que tocava na vitrola do pai, o ajudou muito a refinar o pensamento crítico. 
Essas lembranças das limitações impostas ainda afligem sua memória e são expostas em forma de composição, como um paradoxo funcional para se auto explicar e provocar no outro a importância de desobedecer. Na música “Na paz do caos”, ele remete duas frases emblemáticas que, embora não estejam nesta ordem, podem ser lidas assim: “Concretos tentarão me atar [...]; Mas tudo que fiz foi em paz”.  
De certo modo, e possivelmente sem pretensão, Prando foi engolido pela gentrificação, mas a percebeu no tempo adequado e, embora não possa suprimi-la, a combate com veemência. Pois como disse na canção “O verme ama”, “...todo gênio em razão, em energia protege seu altar, sua forca...”.
Dessa percepção afloram muitas de suas composições, mas a que mais revela sua necessidade de transgredir talvez seja “Circo dos palhaços dixavadamente imorais”. Nela, ele expõe parte daquilo que Jonathan Raban chamou de “teatro”, ao se referir à uma sociedade carente de se comportar em padrões pré-estabelecidos a partir de convenções sociais não aleatórias.
A cidade seria então uma série de palcos em que indivíduos podem operar sua própria magia distintiva enquanto representam uma multiplicidade de papéis e sua construção física se faz de forma labiríntica.
Por isso, na canção ele diz: “Sorria sem vontade, você pode ser filmado/ Sorria qualquer hora, é proibido estar zangado/ Sorria se o padeiro te entregou o troco errado/ Sorria pro espelho pra convencer o contrário/ Sorria, tão dizendo que faz bem”.
No final da letra ainda acrescenta: “Não me leve a mal, eu sou um mero palhaço/ De calças largas que me deram e que já foi de um outro/ Não chore, meu rapaz... Não me interprete mal/ Eles te enganaram e aplicaram um sorriso falso”.
Mas Prando sempre foi maior do que suas próprias palavras e não se limitou a escrever e cantar músicas engajadas ou de crítica social, apesar de todas elas trazerem mensagens bem definidas sobre a vida que se pode ter. Certamente sua trajetória não é a “autobiografia de um espantalho”, mas de um resiliente.
Quando saiu da Hi-Sky, entrou na banda Outdoor. Cantava ao mesmo tempo em que trabalhava como design e como Segurança do Trabalho, fazendo jus ao que estudou, afinal é preciso ter um segundo plano.
Mais tarde, a banda Outdoor mudou de nome para “Mendigos Cientistas” e o levou a outro nível. A primeira mudança foram as tatuagens. A banda tinha uma parceria com um estúdio de tatuagem. Ali fez uma e hoje tem cerca de 20.
Essa banda tocava principalmente na UFES, em pubs e eventos na cidade. Foi início também do YouTube e ele se apoiou nesta ferramenta para fidelizar um público que o encontrava nos palcos.
Em 2011, quando o Festival Prato da Casa, tradicional evento de Vitória, o chamou para tocar, ele se apresentou como a “Banda do André Prando”. Lá, encontrou muita gente que o seguia nas redes e aproveitou para definir duas coisas importantes: seguir carreira solo e agir diferente com seu público assumindo a postura de um “artista acessível”, daqueles que desce e vai abraçar quem quiser abraçá-lo, assim como fez no bar em que o vi pela primeira vez.
A música “Ode à nudez” tem a proposta de falar disso, de lembrar da humanidade e normalidade do artista quando em interação com outras pessoas. Em um trecho ele destaca: “Nos dias que ando sem máscara posso dizer que eu sou você”.
Por vota de 2012, ouvindo a discografia de Raul Seixas, prestou atenção no disco “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” que Raul gravou junto a Sérgio Sampaio, Edy Star e Miriam Batucada. E este Sampaio se destacava. Quando bateu um Google teve um susto ao descobrir que se tratava de um artista capixaba.
Ouviu a música “Eu quero é botar meu bloco na rua” e percebeu que, apesar de estar presente no inconsciente coletivo do brasileiro, quase ninguém sabia que se tratava de uma composição de Sérgio Sampaio.
Obviamente, se apaixonou pela música do cara. Depois disso, se aproximou do Festival Sérgio Sampaio, importante evento em sua homenagem, e, ainda em 2012, cantou na Sampaiada as músicas “Tem que acontecer” e “Última esperança”.
Quando descobri a música de Prando em meu garimpo pela internet também havia redescoberto Sérgio Sampaio em outras vozes. Mantinha uma versão de “Que loucura” em minha seleção das mais ouvidas na voz, do também capixaba, Juliano Gauche.
Em 2014, Prando gravou um EP com quatro músicas que levou o título de “Vão”. No ano seguinte, com o sucesso dessa empreitada, surgiu o primeiro álbum: “Estranho sutil”, com dez músicas, sendo uma delas uma versão irretocável de “Última esperança”.
Desde o ano passado, ele trabalha o álbum “Voador”, lançado pela Sony junto com a Novíssima Música Brasileira. A produção é de Jr Tostoi, guitarrista de Lenine, e de Henrique Paoli. O novo trabalho já entrou em várias listas de melhores lançamentos de 2018 e compensa cada segundo. Apesar da distribuição, o disco ganhou vida graças a um financiamento coletivo que alcançou 119% da meta.
No próprio site do artista, o disco é descrito como sendo “a visão de alguém que paira atento a si e a seu redor, observando, absorvendo e abduzindo. As músicas refletem nosso tempo, nossos antepassados e nossas utopias. Voar é sonhar, é viajar”.
Depois de ouvir dezenas de vezes, concordo plenamente, embora nossa primeira conversa tenha sido sobre a importância da valorização vertical de sua obra. Lembrei a ele que quando ouvi as primeiras músicas do EP “Vão”, ele ainda era estudante universitário e este talvez seja seu trabalho mais emblemático, pois surgiu em um tempo em que era praticamente só ele, sua vontade e genialidade contra o resto do mundo.
Prando construiu uma trajetória seguindo um curso bem delimitado. Bebeu na fonte e se alimentou do que é essencial para a construção de um artista autêntico e de personalidade aguçada. Preparou-se academicamente aproveitando as experimentações como base e constituiu-se como um sujeito pensante e questionador, como deve ser todo artista que conhece o poder da arte. Ainda não chegou ao topo, apesar disso, já possui um legado significativo para a música brasileira e a poesia do rock.
Depois do show, sentamos em uma mesa para conversar enquanto sua esposa, a professora de biologia da rede estadual e figurinista, Laura Zucoloto, chegava para a apanhá-lo. Não tive a chance de conhecê-la, pois já beirava a uma da manhã. Mas o resultado de nossa conversa está aqui, conclusa com um pequeno jogo de perguntas e respostas sobre a música, a vida e a arte. Description: https://ssl.gstatic.com/ui/v1/icons/mail/images/cleardot.gif


– O que é ser artista hoje em um mundo conectado?
– É criar algo que faça sentido para alguém. Que faça sentido pra mim, para as pessoas que vão ter contato com isso e que isso tenha algum impacto, de alguma forma. No meu caso, muito além do entretenimento, é que este impacto seja para estímulo do pensamento crítico. Eu entendo que nem todo artista enxerga este papel como fundamental, mas acho importante. A arte para mim é crítica, é política, é uma posição.
– As redes sociais mudam a perspectiva na construção do artista?
– Acho que mudam, cara. Até porque, grande parte das pessoas só tem o contato com o artista a partir das redes sociais. Por exemplo, quando eu vou tocar fora, o entusiasmo das pessoas ao me encontrar é muito grande porque só me veem na internet, assistem vídeos meus há muito tempo e não imaginam que um dia vão encontrar comigo. E aí, de repente, apareço tocando em um teatro para 50 pessoas, acessível, ali para trocar uma ideia e tal. Então, a rede social pode criar uma imagem para o bem ou para o mal.
– Como foi sua passagem por Natal?
– A primeira vez que fui tocar em Natal foi pelo festival MADA (2015). Aconteceu uma seletiva de bandas do Brasil todo e aí me inscrevi e fui selecionado. Antes de rolar esta seleção, eu recebia muitas mensagens de Natal. Eu recebo sempre muita mensagem de gente do Brasil inteiro chamando para tocar em sua cidade. Então, eu sabia que algum público existia lá. Então fomos tocar e tinha uma galera. Foi legal. Depois voltei em 2017 no Festival DoSol. Conhecia o Foca pela internet e fui lá.
– O que você espera de sua carreira?
– Espero poder viver até o fim de minha vida disso, porque é isso que eu tenho para fazer da vida. Se eu não for capaz de exercer minha música eu acho que não sou capaz de viver. Não é uma fala apaixonada...
– O que é preciso fazer para ser o que se espera da vida?
– Acho que é fundamental criar, criar no sentido da alquimia, de transformar algo em outra coisa, assim. No meu caso, criar é compor. Nem todo mundo compõe, nem todo mundo executa um instrumento de uma forma própria, com identidade. Acho que isso é fundamental para o artista se destacar; é descobrir sua identidade. Eu acho.




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