REFÉM DE UM CRIME


Em 1988, Raí Lopes foi uma das vítimas do primeiro assalto a mão armada em um banco no Rio Grande do Norte. As imagens desta ação que durou oito horas nunca tinham saído de sua cabeça, até agora, quando ele resolveu pôr tudo no papel e lançar seu mais novo livro: “Um dia de cão” que conta tudo o que aconteceu.

Tudo parecia normal naquela segunda-feira, 2 de maio de 1988. Mossoró, pacata ao extremo, em uma época em que o rádio era o grande veículo de comunicação, jamais suspeitaria do que estava para acontecer. Raí Lopes menos ainda. De ressaca depois de um final de semana de bebedeira com amigos, chegou à agência do Banorte, onde trabalhava há quatro anos, às 7h45 da manhã, com a impressão de que as horas seguintes seriam de perrengue. “Hoje vai ser um dia de cão!”, sussurrou.

Interessante é que a mesma frase foi também pronunciada pelo colega Barbosinha, católico praticante que gostava de se benzer e pedir proteção antes de começar o expediente. Talvez tenha se esquecido da prece neste dia, porque o que presenciaria horas depois marcou profundamente a sua vida.

Por volta 12h45, um sujeito identificado apenas como “Falconi”, portando um revólver de brinquedo, enrolado em uma sacola plástica, e uma seringa que dizia estar infectada com o vírus HIV rendeu o gerente da agência, Amilton Dantas, e anunciou um assalto. Preocupado em proteger a vida, Amilton ordenou ao vigilante que entregasse a arma ao bandido que, finalmente municiado, passou a comandar o primeiro assalto com reféns da história do Rio Grande do Norte e o terceiro do Brasil.

Raí, que não tinha almoçado ainda, sentiu a ressaca virar um pesadelo. Ele era o primeiro caixa a ser visto na entrada da agência e, por isso, foi um dos mais usados pelo assaltante. O funcionário foi obrigado a improvisar máscaras com sacolas plásticas e a recolher dinheiro dos caixas. Coube a ele também amparar uma colega que desmaiou após o bandido disparar a arma contra a porta do Banco para causar pânico.

A ação de Falconi foi bem pensada, pelo menos na abordagem inicial. O que ele não planejou foi a saída, por isso, o assalto durou pelo menos oito horas, encerrando apenas às 20h35. Toda a ação foi transmitida, ao vivo, pelas emissoras de rádio da cidade. Seu desfecho pode ser lido no livro “Um dia de cão”, novo trabalho de Raí Lopes que guardou essas lembranças por mais de 30 anos.


Com mais de 500 páginas, o livro reconta este episódio a partir da visão do próprio Raí, mas também de várias outras testemunhas. A proposta, além de deixar registrado o acontecimento, desmistifica algumas informações divulgadas à época e corrige a maioria dos relatos sobre o referido episódio.

Previsto para ser lançado no próximo dia 24, trinta e um anos após o acontecimento, a narrativa rápida e detalhada transporta o leitor para o momento do assalto. Personagens, cenários e lembranças desaparecidas pela passagem do tempo são retomadas, o que torna este um trabalho importante também para a remontagem de muitas transformações ocorridas na região e no Brasil.

Raí Lopes é detalhista, atencioso aos fatos e acontecimentos e, apesar de ter sido um refém importante para a mira de “Falconi” não viveu sua vida ao redor deste fato. Muito pelo contrário, usou este acontecimento para se fortalecer enquanto pessoa e crescer como observador da vida cotidiano, tanto que não deixou o tempo sequer envelhecê-lo. Parece ter 20 anos menos que a idade.

Dono de um currículo extenso, Raimundo Antonio de Souza Lopes, assim mesmo sem o circunflexo no segundo nome, nasceu no sítio Acauã, em Itajá, por coincidência, numa segunda-feira, ao meio dia, laçado pelo pescoço pelo cordão umbilical. Era 22 de abril de 1957 e este acontecimento quase mata a ele e a sua mãe, Alice Cândida Lopes, com quem viveu apenas dois anos.

Adotado pelo tio Aniceto Lopes (falecido) e pela esposa Raimunda Neri de Sousa Lopes, 86, logo os aceitou como pais e inverteu o parentesco, passando a chamar a mãe legítima de tia.

Os pais adotivos lhe deram um irmão, Francisco, também adotado. A mãe biológica teve outros 11 filhos: Wollas, Francisco, Diassis, Canindé, João Batista, Magda, Conceição, Antonia, Maria das Dores, Maria José e Maria Cândida, não necessariamente nesta ordem. A mais velha de todos é Magda e a mais nova é Cândida. Raí é o segundo dos meninos.

– Interessante que eu só vim conhecer e saber quem eram meus irmãos legítimos quando eu tinha 11 anos de idade.

A infância foi em Mossoró, nas Rua Princesa Izabel e Antônio Costa Filho, no bairro Doze Anos. Na segunda metade da década de 1960, até a primeira metade da década de 70, estudou na Escola Princesa Izabel, Diocesano, Ginásio Municipal (atual Escola de Artes), União Caixeiral e Colégio Estadual.

Aproveitou bem a meninice brincando e fazendo traquinagem atravessando a linha de ferro entre o Doze Anos e o Alto da Conceição. Colher fruta nos quintais alheios fazia parte da rotina, o que perturbava funcionários do aeroporto, o Padre Sátiro Cavalcante e o ex-senador Duarte filho. Tomar banho no rio Mossoró era também uma diversão disputada àquela época.

– Éramos crianças felizes. Estudávamos, brincávamos e nos divertíamos. Por exemplo: se queríamos chupar cajarana, íamos pelo “Rabo da Gata” até onde hoje é o Nogueirão e lá colhíamos a quantidade que queríamos. Na verdade, dali do Colégio Estadual em direção ao Nogueirão tudo era mato. Ali onde funciona a casa do Estudante era uma casinha de alpendre e tinha, na sua frente, uma cancela. Nós a abríamos e enveredávamos por uma trilha até chegarmos aos pés de cajarana.

Sua adolescência foi marcada pelos bailes no Clube Ipiranga (atual Aceu), na tertúlia de Pajeú e no Bar de Elpídio, no bairro Boa Vista. Outros divertimentos eram os vesperais e matinés nos cinemas Ferroviários, Rivoli, Pax e Cine Cid. Os banhos de rio foram substituídos pela piscina da AACDP, que era bastante procurada.

Aos 18, alistou-se no Exército, servindo em Natal no 17ª Batalhão de Artilharia. Fez curso para cabo e, quando pediu baixa, saiu como 3º sargento. Deixou o serviço militar porque seu perfil não servia para o regime de exceção por qual passava o Brasil.

Do Exército foi dirigir caminhão e correr o país, até que em 1977, mudou-se para São Paulo, onde ficou até 1982. Lá, trabalhou no Esporte Clube Sírio e conviveu com Oscar “mão santa”, Dodi e Saiani que integravam a o time de basquete. Foi ali também onde Raí deu os passos iniciais na escrita, primeiro com poemas, depois com artigos para a revista do próprio Clube.

Ao retornar para Mossoró, resolveu fazer o ensino médio profissionalizante em Contabilidade no Eliseu Viana, mesmo já tendo o Científico. Pouco tempo depois da chegada, casou-se com a educadora Maria Auxiliadora Alves de Queiroz Lopes, com quem convive há 37 anos. Dessa união nasceram Poliana Souza de Queiroz Lopes (jornalista) e Pedro Hugo A de Queiroz Lopes (missionário).

Seu primeiro emprego neste recomeço foi na construtora Fimac, mas, dois anos depois, em 1984, devido à sua formação técnica surgiu uma oportunidade que mudaria a sua vida. Ao conseguir uma vaga de caixa na agência 106 do Banorte, pode seguir novos planos devido a estabilidade promovida pelo bom salário oferecido.

Motivado, neste mesmo ano foi aprovado no vestibular para Matemática na Fundação Universidade Regional do Rio Grande do Norte (FURRN), atual UERN, mas passar o dia no Banco e continuar estudando cálculos à noite foi demais para a sua cabeça. Trancou o curso, prestou outro vestibular, dessa vez para a História, concluindo em 1988.

O resultado desse esforço chegou em 1990 ao ser aprovado em concurso público para o Estado, função que exerceu até 2016, quando assinou sua aposentadoria. Aproveitou ao máximo a oportunidade que teve no Banco, ficando na função por 11 anos, largando apenas em 1995, sete anos após o assalto.

Entre uma coisa e outra, Raí ainda cursou Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, na UERN, entre 2005 e 2008. No ano em que entrou no curso, passou a colaborar para o caderno Expressão do jornal Gazeta do Oeste, escrevendo crônicas semanais até o fechamento do periódico em 2015. Atualmente, colabora quinzenalmente com a coluna José Martins de Vasconcelos aqui no Jornal de Fato.

O gosto pela leitura começou cedo, ainda na juventude através do avô materno, Manoel Pedro de Oliveira, que gostava de filosofia e possuía uma coleção de clássicos. Mesmo sem entender muito o que lia, Raí não largava os livros. Leu também muito gibi e apaixonou-se por ficção científica, leitura que preserva até hoje. Neste tempo também mergulhou na literatura proibida de Adelaide Carraro e Cassandra Rios e, por incrível que pareça, seus estilos de escritas influenciaram bastante a percepção da produção literária do jovem Raimundo.

Atualmente dedica atenção especial a autores como Rubens Alves e Rubem Braga, o que amplia a possibilidade de construção de personagens, ação que começou ainda no tempo de menino, sem saber. É que quando ia visitar a “tia” Alice em Itajá, gostava de ouvir as conversas dos mais velhos sobre temas diversos de suas vidas, sobretudo as aventuras duvidosas de terem acontecido.

Não há espaço nesta folha para descrever a produção do escritor que se tornou Raimundo Antonio de Souza Lopes. Desde 2008, participou de 14 antologias, além de participação em revistas e produção de produtos científicos.

Organizou 17 obras de crônicas, contos, artigos e poesias e escreveu 11 livros: Um Olhar Sobre o Cotidiano (2009); A Flor e o Botão: som, ruído e brisa (2010); Diálogos em Retalhos de Cetim (2014); Expedito Mariano de Azevedo: a saga de um bolão (2015); Retratos de Cotidianos (2015); João Sabino de Moura: um homem de sonhos, esperança e realizações (2016); Antonio Ysmael de Araújo: em busca do sim (2016); O legado de Joaquim Francelino e Albaniza Vale: exemplo de força, fé e esperança (2017); Um poema pousou no céu da minha fantasia (2017); Ary e Clotilde. E assim se fez uma família (2018) e Aproniano Martins de Oliveira: do sertão paraibano ao litoral potiguar (2018).

Desses, pelo menos seis são biografias, principal gênero adotado por ele. A carreira como escritor lhe rendeu cinco prêmios literários: 1º concurso de Contos de Caminhoneiros, promovido pela Mercedes Benz do Brasil (2008), dois concursos João Batista Cascudo Rodrigues (211 e 2013) e dois Rota Batida de Literatura (2008 e 2014).

Desde que entrou no curso de Jornalismo, em 2005, surgiu a vontade de reescrever sobre a experiência vivida no Banorte em 1988. As discussões sobre livros reportagens lhe acenderam o interesse pelo gênero, o fazendo iniciar, mesmo que inconscientemente, a pesquisa sobre o ocorrido.

Alguns colegas se interessaram pelo acontecimento e resolveram produzir um documentário, o convidando para dar um depoimento. No momento de sua fala, Raí percebeu que lembrava mais do que imaginava sobre aquele momento. Ainda assim, deixou a ideia guardada até que, tempos depois, meio que sem querer, começou a pesquisar novamente sobre, Ficou surpreso ao achar muitas informações desencontradas e falsas sobre o fatídico dia. Alguns inscritos erravam até a data e o ano do assalto.

Isso foi a chama que faltava, segundo ele porque, como jornalista e historiador, tinha o dever de contar a história com o máximo de fidelidade possível. Porém, suas pesquisas revelaram algo ainda mais surpreendente.

É possível que muitas das informações desencontradas tenham sido repassadas por alguns dos reféns, não por má querência, mas pelo bloqueio causado, provavelmente, pelo trauma vivenciado.

– Me chamaram atenção nos depoimentos dos colegas que ficaram como reféns os bloqueios de memórias em determinados momentos. Fica claro que em relação às cenas impactantes e que causam traumas, alguns conseguiram bloqueá-las de uma maneira tal que é como se não tivessem acontecido.

Assim mesmo, Raí Lopes conseguiu extrair em mais de 20 entrevistas realizadas, as informações primordiais para tornar o seu 12º livro, “Um dia de cão”, muito fiel aos acontecimentos. O momento foi tão decisivo na história da economia local, que forçou os bancos a adotarem medidas protetivas mais rígidas e os comerciantes a tratarem seus pertences e dinheiro com mais profissionalismo.

– Em 1988 era costume os caixas e tesoureiros de agências bancárias de Mossoró saírem de suas agências e irem retirar vultosas quantias de dinheiro – para pagamento a seus clientes – na agência do Banco do Brasil, somente acompanhados por um vigilante e, muitas vezes, pasmem, por um colega de trabalho. Às vezes, até mesmo sozinhos. Além disso, a própria agência do Banorte disponibilizava um carro com um funcionário (caixa), um vigilante e uma máquina autenticadora no banco traseiro de um veículo para que estes saíssem arrecadando depósitos de seus maiores clientes. Desta forma, era normal a população ter ciência de que aquele carro, daquela agência, transportava altos valores em dinheiro e cheques.

Apesar de passar três dias consultando Raí para a construção deste texto, nossa conversa foi insuficiente para compreender o mínimo desta história. Ele e eu somos colegas do Instituto Cultural do Oeste Potiguar (Icop) e escrevemos no mesmo espaço quinzenal. Somos também frequentadores do Café e Poesia, mas a existência deste livro cria um novo vínculo entre nós dois. Esta nova reaproximação foi o que direcionou a pequena entrevista sobre a obra e sua vida que segue a partir de agora.

– O que “Um dia de cão” revela sobre a nossa sociedade?
– Revela uma mudança profunda no comportamento do cidadão mossoroense que passa a ter consciência de que a cidade está inserida no circuito da violência e que se faz necessário adotar medidas para combater justamente essa nova prática de subtrair os recursos de quem milita na indústria, comércio e estabelecimentos bancários.

– Este fato, que foi considerado inusitado à época, hoje não representa nada no mundo de tamanha violência. O que poderíamos ter aprendido com ele?
– Hoje a prática do assalto a banco com reféns não representa mais uma ameaça à sociedade. Às medidas de segurança adotadas pelas instituições coibiu esse tipo de violência, porém foi por muito tempo, e a partir do assalto ao Banorte Mossoró, uma prática que deixava as cidades em constante alerta. O aprendizado se deu de forma traumática para muitos. E, para outros, com medidas preventivas e onerosas.

– Tem um quê de espetacularização também, quer dizer, as pessoas gostam e ampliam a violência, de certa maneira?
– Com certeza. Aquilo que choca, que aumenta a adrenalina e que pode motivar algo extraordinário, fora do comum – especialmente quando há perigo na cena, é sempre mais atrativo. O assalto proporcionou histórias espetaculares e elencou passagens muito curiosas.

– Diante de tudo que você escreve, de suas pesquisas e relatos, é possível traçar um paralelo das mudanças sociais observadas?
– A mudança social foi clara. O povo passou a ter mais cuidado, a se preocupar mais com a sua individualidade, a realizar suas ações de forma mais segura e a prestar mais atenção, especialmente em atos que envolvam a parte financeira. Embora a principal mudança tenha sido a não confiar mais no próximo.

– O que você aprendeu contando essas histórias?
– Como passei a ser biógrafo, e já contei várias histórias de personagens reais, o que aprendi com o assalto ao Banorte foi justamente ter esse olhar de como saber contá-las, sem esquecer as minudências. Ou seja, observar os detalhes para não perder o fio da meada e narrar de uma forma que o leitor se veja inserido no contexto.

– Como a tarefa de ser professor contribuiu para a sua forma de olhar o mundo?
– Olha, realizei-me na sala de aula. Deixei tudo na minha vida para ser professor. Na sala de aula, eu pude conviver com a heterogeneidade e aprender com o diferente do meu pensar. Nada se compara ao convívio de uma sociedade chamada sala de aula. Só quem participou dela sabe do que estou falando. E a maior lição da sala de aula não é o outro que tem que adentrar ao meu universo medíocre de saber, mas eu que tenho o dever de me inserir no universo do outro e ajudá-lo a realizar seus projetos de vida.

– Você acha que vive bem a sua vida ou falta fazer muito ainda?
– Particularmente, sou uma pessoa bastante caseira, que não se preocupa muito com o supérfluo, que não precisa de muito para viver. Na verdade, não sou curioso, mas sou, sim, observador. Se eu quero ir a Paris, eu entro na internet e leio sobre a França e, consequentemente, sobre a cidade luz. O dinheiro não me cega. Convivo muito bem com o que ganho de aposentadoria. Mas tenho uma vontade enorme de escrever alguma coisa que ultrapasse gerações. Ah, isso eu tenho sim. E isso me motiva a seguir.

– O que você mais se lembra nesta caminhada que pode servir de orientação para os mais jovens?
– Quando eu estava em sala de aula, no primeiro dia de cada ano letivo, a primeira coisa que fazia com minhas turmas era a de levá-las ao lugar mais sagrado da escola: a biblioteca. Lá eu dizia sempre assim: “nós que não nascemos em berço de ouro só temos uma maneira de mudarmos a nossa realidade social e de nossos descendentes: estudando e, através do estudo, adquirindo conhecimento. Não há outra maneira, nem mesmo se tirarmos na loteria, pois sem o conhecimento estamos fadados a perdemos o que ganhamos”.

– Viver é melhor que sonhar?
– Acho que é preciso viver a realidade para poder ter o direito a sonhar. Nem sempre sonhar é sinônimo de coisa boa e nem sempre a realidade pode ser encarada como uma coisa ruim. O poeta é um fingidor, já dizia Fernando Pessoa. Portanto, eu diria que o escritor sonha em realizar seus projetos literários e, aí sim, quando os realiza, fantasia o seu mundo ideal, igual ao poeta.

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