INSTRUÇÕES PARA RECONSTRUIR UM HOMEM
Antes de completar 40 anos, Theo Alves, um dos mais expressivos poetas
da atualidade no RN, anunciou que está deixando a literatura. A decisão foi
anunciada nas redes sociais, mas as razões talvez possam ser encontradas aqui,
nesta pequena conversa.
Este
não é um texto fácil. Não é o maior desafio deste projeto, mas é um desafio
enorme escrever sobre circunstância tão séria e ao mesmo tempo triste. É difícil
porque não conheço Theo Alves, porque li pouco sua obra, mas, sobretudo, porque
sua decisão de deixar a literatura dialoga muito comigo. Neste ponto
específico, pode ser que me confunda e fale tanto de mim quando deveria estar
falando dele.
Estava
correndo a linha do tempo do Facebook quando vi seu post avisando que pararia
de escrever. Disse isso após publicar três livros excelentes de poemas, de
ganhar vários prêmios, inclusive internacionais, e de ser considerado um dos
mais importantes nomes da nova safra de poetas do RN, informação corroborada
por Tácito Costa, um dos jornalistas culturais mais sérios do Estado.
– Esta é minha
despedida da Literatura. E acho que escrevo isto mais para mim do que para
vocês. É uma maneira de confirmar um dado de realidade, o que não faço sem uma
imensa dose de tristeza e alguma decepção.
Esse relato de
Theo é o começo de uma “carta” que escreveu em seu blog “A máquina de avessar
os dias”. Lá, ele deixa uma explicação sentida e dolorosa de sua decisão. Reclama
de muito trabalho e pouco retorno, de dedicação demais a uma coisa que, pelo
que compreendi, não lhe deu a visibilidade que gostaria de ter tido depois de
uma vida inteira de dedicação.
Escrevi a Leontino
Filho para contar este fato. Ele lamentou e me respondeu dizendo esperar que
este não seja realmente o fim. É a mesma coisa que espero, embora no começo do
ano, sentado na varanda de minha casa em Mossoró, tenha dito ao próprio
Leontino, na presença de minha esposa, que não tinha mais ânimo para escrever.
Disse isso após
publicar quatro livros e ganhar dois prêmios importantes para qualquer um que
está começando, incluindo um nacional, e outros menores por participação em
coletâneas. Não tive a mesma visibilidade que Theo em relação a seus livros
aqui no Estado, o que me frustrou muito, mas tive a honra de estar entre os
novos autores potiguares reconhecidos por Thiago Gonzaga em sua coletânea
Impressões Digitais.
Mas a
literatura exige da gente muito mais do que leitura e publicação, exige
militância e marketing. Theo diz ser ruim de venda e divulgação, mas eu sou
pior ainda. Então, neste sentido entendo completamente a sua decisão e, talvez,
saiba, lá no fundo, o que ele está sentindo, o que o motivou. Ainda assim, como
todo sujeito esperançoso, como todo humano incompreensível, não consigo
acreditar e gostaria que ele recuasse.
Lírico, Theo
consegue imprimir sentimentos em sua obra de maneira distinta. Em seu poema “Instruções
para reconstruir um homem”, o meu favorito por se aproximar de minha visão
poética, ele diz que “juntar os/ cacos de um homem/ não refaz/ um homem inteiro”.
Tenho de concordar com ele, mas uma chama acende ao ver que ao final deste
mesmo poema ele deixa escapar que os cacos resultam em “um homem refeito com um
caco a mais de esperança”.
“A máquina de avessar os dias” foi o único
livro dele que li. Vejam que absurdo. E ao ler os primeiros poemas
imediatamente concordei com Tácito. Surpreendente a sua leveza e capacidade de
sintetizar o estado simplificado das palavras. Tanto que sua forma me lembrou
muito a de Kalliane Amorim, uma poeta que muito estimo.
Ambos escreveram
lembranças de suas avós. A de Theo me comoveu por me fazer lembrar da minha,
que igual a dele já partiu, mas que me ensinou tudo sobre tanto. Em um dos
trechos do poema “A máquina de avessar os dias de minha avó” ele escreveu, ou
descreveu: “minha avó/ com sua máquina de/ avessar os dias/ acordava/ a casa no
meio da noite/ ironizava/ a invenção do vento/ esquecia/ os nomes inúteis das
filhas/ recriava/ o absurdo não linear do tempo”.
Veja que
preciosidade. Minha avó dizia o nome de todos os filhos para acertar o nome que
pretendia. Isso representou o seu destino final, mas, incrivelmente, quando ela
os chamava, ou perguntava pelos lugares onde já esteve, nos transportava ou trazia
de volta os que nos tinham deixado pelo desejo do tempo.
Em “Para o
perdão” ele antecipou, para nós, a seguinte mensagem: “se/ é de distância o teu/
silêncio:/ caminha/ tua voz/ para que seus/ passos/ possam entre/ passos/ reencontrar/
a brandura de teu canto”. Mas, para quem escreve, na maioria das ocasiões, só o
silêncio não basta. A gente quer “viver, beber perfumes”, como disse Castro
Alves. E é por isso que talvez cansemos de nós mesmos e depois das letras.
No poema “segunda
ode ao avesso à rua do rosário”, Theo faz a seguinte observação: “não me fazia
mal:/ se meu espírito/ alimentava-se/ meu corpo/ compreendia”. Apesar de não
ser este o contexto, mas descontextualizando a frase do poema e a trazendo para
cá, podemos fazer uma associação com a sua luta, pois “Nós, que somos
borboletas das crisálidas de avós” sabemos o limite que alcança nossos pés.
Theo Alves é o
nome literário de um cara gente boa, pelo menos tem cara, que foi batizado com
nome estrambólico e exagerado: Therlandeson Gley Alves. Apesar do meu bulling,
ele mesmo diz não se reconhecer como tal.
Nasceu em
Natal no dia 14 de dezembro de 1980. Não tem pai e apenas uma irmã adotiva, a
Camila, que como ele também foi criado pela avó Guilhermina Alves Costa,
falecida em 2009, aos 91 anos. Sua mãe, Maria do Socorro Alves, empregada
doméstica e costureira, precisou de muita matemática para criá-lo, assim como
fez grande parte das mães dos meninos simples de sua época.
Por volta dos
dois anos de idade, foi levado para Currais Novos, cidade de sua mãe. Lá, estudou
nas escolas estaduais Tristão de Barros e Capitão-Mor Galvão, depois no antigo
Colégio Comercial. Terminou o ensino médio em 1998, no Colégio Camilo Toscano (CCT),
todas de Currais Novos, onde viveu praticamente toda a vida e de onde extrai
suas maiores e mais significativas lembranças.
– Tive uma
infância um tanto triste devido a muitos problemas de saúde, mas com poucos e
bons amigos, brincando em ruas de barro e na chuva, quando não estava doente.
Alguns dos amigos de infância me ensinaram muito sobre linguagem quando usavam
termos e construções tão peculiares que só pertenciam aos seus universos. Eu
ficava feliz em poder participar deles de alguma forma, em fazer parte dessas
apropriações da linguagem que só passei a entender na teoria muitos anos
depois. Aliás, a maior parte de minhas lembranças de infância estão
relacionadas à linguagem: as palavras que minha avó me ensinava, os
deslumbramentos que sentia quando via meus amigos usarem palavras que eu não
entendia.
Saiu de
Currais Novos muitas vezes. Ainda pequeno, morou em Mossoró. Aos 21, morou em
João Pessoa por um ano. Em 2009, mudou-se para Santa Cruz, depois Macau, Nova
Cruz e mais uma vez Santa Cruz, por causa do trabalho. Em 2014, voltou a
Currais Novos e em 2019 para Santa Cruz onde tinha ficado sua família.
Cursou Letras
no campus Currais Novos da UFRN. Ingressou em 1999 e concluiu em 2005. Queria Psicologia
ou Jornalismo, mas como não tinha condições de sair do interior, acabou se
tornando professor, que na verdade já era algo por que se interessava, tanto
que começou a dar aulas de Inglês no CCT aos 15 anos.
Fora o ano que
ficou como redator da Sidys TV, canal local de Currais Novos, seu trabalho foi
sempre como professor de inglês, português, literatura e redação. Em 2011, no
entanto, passou no concurso de técnico administrativo do IFRN, responsável por
muitas de suas mudanças de cidades, e onde trabalha até hoje, agora no campus
de Santa Cruz.
Vive lá com
sua esposa Milla Medeiros, professora, e os três filhos: Fernanda, 9,
Guilherme, 6, e Dylan ainda na barriga da mãe, esperando agosto chegar.
Morar com a
avó enquanto a mãe ralava na vida foi duro, mas viver sem pai é sua grande mágoa
e lugar de questionamentos.
– É estranho
porque isso é mais uma luta não travada do que uma batalha propriamente. Não
saber seu nome, quem é, o que faz ou qualquer outra coisa construiu um vácuo,
uma sensação de não pertencimento com que foi difícil lidar durante toda a
vida. Boa parte do que sou foi construído a partir disso. Era constante a sensação
de aprender pela falta, pela ausência do exemplo, pelo erro. Não sei se isso é
propriamente um desafio, mas é antes de tudo a matéria a partir da qual
elaborei parte significativa da minha compreensão de mundo.
Mais
recentemente, este desafio avolumou-se, pois o cara sem pai assumiu o
compromisso de sê-lo e isso lhe foi, a priori, assustador.
– Eu não tinha
um exemplo de pai a seguir, então é preciso pensar no que fazer ou como reagir
diante das situações sem um modelo pré-existente. Isso é assustador, mas é
também libertador, confesso. E acho que tenho me saído bem.
Toda essa
trajetória lhe foi barco para guiá-lo à literatura, acontecimento natural que
surgiu como algo predestinado ou como um daqueles acasos inexplicáveis.
– Entrei pela porta da frente da Literatura.
Tive a sorte de, aos oito anos, ler o Espumas Flutuantes, do Castro Alves.
Minha casa não tinha livros, mas uma caixa pequena com alguns volumes foi
deixada por uma tia e lá estava o livro do Castro Alves. Li sem entender
exatamente o que era, mas a sonoridade e as construções causavam em mim um
encantamento ainda desconhecido. Embora este tenha sido meu primeiro livro,
tenho de confessar um gosto, um alumbramento que a palavra me causava desde
antes: era o gosto pelas palavras de que minha avó gostava, o desafio de
aprender palavras difíceis como “tigre” e “helicóptero”, o encantamento pelas
primeiras letras aprendidas ainda bem pequeno, as conversas ouvidas dos mais
velhos, cheias de coisas que eu ainda não compreendia. E tudo que eu não
entendia me convidava, me convocava ao desafio. E eu gostava disso. Gosto até
hoje. A palavra e seus enigmais ainda me provocam e alimentam.
Nunca deixou
de ler, tendo em constante companhia Jorge Luís Borges, Manoel de Barros, André
Gide, Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) e Valter Hugo Mãe. Atualmente apaixonado
pela fotografia, anda lendo uma dezena de autores desta arte.
Sua vida como
autor começou em 2009, quando publicou o “Pequeno manual prático de coisas
inúteis”, reunindo um conjunto de poemas escritos calmamente ao longo dos anos,
costume que mantém até hoje. A qualidade do trabalho despertou o interesse da
editora Flor do Sal, de Adriano de Souza e Flávia Assaf, que o publicaram.
Em 2016,
publicou, também pela Flor de Sal, o já citado e comentado “A máquina de
avessar os dias”, trabalho que ficou muito bonito. Em 2018, lançou uma campanha
de financiamento na internet para publicar “Doce azedo amaro” pela editora
Moinhos, de Belo Horizonte, atraindo novamente enorme atenção pela qualidade da
escrita, capacidade de divulgação e estética na elaboração.
Theo Alves
anunciou parar com a literatura tendo na gaveta um livro de contos que pensou
publicar ainda neste ano. O trabalho já teve uma enorme aprovação, pois um dos
contos, “Por que não enterramos o cão?”, venceu, no ano passado, o prêmio Ignácio
de Loyola Brandão. Outro foi publicado, já neste ano, no Correio das Artes, da
Paraíba.
Falei pelo
Facebook sobre esta entrevista e ele topou na hora. Como já tinha lido sua “carta”
de despedida, resolvi seguir o rumo da construção do perfil que já o faço e
caminhar por uma entrevista mais esclarecedora sobre a dura decisão que tomou. O
resultado que segue não poderia ter sido melhor, o que prova, mais uma vez, o
grau de sensibilidade literária e poética deste jovem do meu tempo.
– O que está
acontecendo com a literatura?
– Esta é uma
pergunta profunda demais para ser respondida em apenas uma resposta. Mas,
grosso modo, a Literatura vive um período de crise, como tudo mais que estamos
vivendo. É uma crise de identidade, de valores, de produção, editorial, de
leitores... uma crise, enfim. Há um abismo que aumenta cada dia mais entre a
literatura como arte literária e a literatura de entretenimento. Isso faz com
que os modelos de produção, comércio e consumo de literatura sejam cada vez
mais próximos do que são os modelos do cinema e da música, por exemplo. Hoje o
peso da nova literatura, das novidades da arte literária, recai sobre pequenas
editoras e sobre os próprios autores. É preciso bancar o próprio livro e tirar
algum dinheiro disso é quase uma heresia para os que fazem da literatura um
hobby elegante. Essa literatura está longe dos leitores. Os autores locais não
são convidados para as escolas, para falar e mostrar seus trabalhos a quem pode
vir um dia a ser público dessa literatura. Isso cria um vazio enorme.
– O mundo
virtual não ampliou a condição do leitor e possibilidades de vendas?
– O mundo
virtual é uma vitrine tão grande que não se consegue ver muita coisa do que
está exposto nela. É possível publicar e vender com um alcance maior do que se
tinha há algumas décadas. Mas a divulgação é ainda feita em pequenos blocos.
Você pode vender para o mundo todo, mas o mundo todo não toma conhecimento do
seu trabalho. Há uma dificuldade em fazer circular o que se produz. Além disso,
a internet nos deu a ilusão de que tudo pode ser conseguido de graça e tudo que
tenha um preço diferente disso não vale a pena. É pensar, como exemplo, o que
plataformas digitais de música pagam a seus músicos: é algo tão irrelevante que
o volume de consumo precisa ser exorbitante para se ganhar alguma coisa. Ou
seja, o mercado mudou, mas os que se alimentam dele continuam os mesmos. Com a
literatura não é diferente. A Matilde Campilho, poeta portuguesa muito popular
por causa de sua boa poesia e seus vídeos no YouTube, vendeu uns 400 livros na
Flip e isso fez dela a autora mais vendida do evento, que é o maior do Brasil.
É fácil entender o que esses números significam.
– Vender livro
é muito difícil no Brasil, mas poesia não é ainda pior de venda?
– É sim. Acho
que sempre foi. O Álvares de Azevedo escreveu que o poeta não tinha um vintém
para uma vela. Acho que isso mudou pouco. Mas o que é uma pena maior é achar
que a única coisa que se pode capitalizar de um escritor é sua poesia. Este ano
eu estava para publicar um livro de contos, o que faria de novo pelo
financiamento coletivo através da internet. Mas este é um processo difícil, de
venda porta em porta virtual: mensagens, e-mails, conversas pelo Messenger,
Whatsapp, blogs, quase um apelo do tipo “compre meu livro, dê uma chance a ele”
e toda a logística que isso inclui... escrever o livro às vezes parece a parte
mais fácil. Ainda bem que desisti da literatura em tempo. Não sei se daria conta
desse processo exaustivo novamente. Talvez um livro de contos vendesse mais do
que os de poesia. Mas essa certeza eu vou ficar devendo.
– O que você
esperava da literatura, ou dos leitores, que não conseguiu?
– Dos meus
leitores, tive sempre bom retorno, mesmo que em pequena quantidade. O que
espero de um leitor é ser lido. Qualquer retorno dessa leitura – e as redes
sociais nos põem em contato mais próximo com os leitores e facilitam isso – é
algo a mais, é sobremesa, sempre muito bem vinda. No entanto, o fazer literário
é um trabalho. E um trabalho trabalhoso, pelo menos para mim. Não posso mais
conviver com a ideia de que fazer literatura é meu passatempo elegante. A
literatura merece uma atenção e um cuidado que exige sentar-se à mesa e
produzir. Quebrar as pedras da palavra com o aço forjado do martelo da
linguagem. E, como trabalho, é essencial que esse fazer literário ou os
processos que o envolvem sejam parte do que nos põe pão à mesa. Então é preciso
que a literatura permita algum retorno prático dela. Eu não achei o meu
quinhão. Gostaria de crer que não pude trabalhar com literatura pela baixa
qualidade do que escrevo ou por não cair no gosto popular dos leitores. Mas
vejo tanta gente boa que paga para escrever que temo não ter sido por isso.
– É muito
comum autores desistirem das carreiras ou as manterem como atividade paralela,
vide Manoel de Barros, Raduan Nassar. Por que isso lhe incomodou?
– Manoel de
Barros comprou seu ócio, como ele mesmo diz, com a fazenda e o gado no Mato
Grosso. Nunca viveu da poesia que escreveu. Nassar escreveu um par de livros
brilhantes e também se manteve distante do universo literário. Não sei
exatamente como eles lidaram com isso, quais modelos de vida e o espaço diário
que a literatura ocupava em suas vidas, quanto precisavam da literatura para
pagar suas contas. Mas meu caso é simples: pensar que sou um escritor sempre me
obrigou a escrever e como, infelizmente nunca fui soprado pela inspiração,
sempre fui um trabalhador da palavra. Não é coincidência que todo livro meu
levou mais de dez anos sendo trabalhado. O livro de contos começou a ser
escrito em 2002, por exemplo, e só ano passado ficou pronto. Com muita tristeza
digo que, se a literatura é um trabalho e de mim ela exige o compromisso que um
trabalho exige, não posso me dedicar a ela como quem se dedica a um hobby
elegante. A literatura não é meu passatempo. Ela é meu trabalho. Isso me gera
uma angústia, um desejo por escrever, por cumprir minhas obrigações para com
ela, o que não cabe no meu dia. Afinal, sobreviver é imperativo, anterior à
literatura. Tenho de pagar boletos, corrigir provas, elaborar aulas, cumprir a
burocracia dos outros trabalhos que financiam a vida. Faço isso por cerca de 12
horas diárias, praticamente todos os dias da semana. Como posso então ter um
outro trabalho nessas condições? Então parar com a literatura não é uma decisão
de mártir, é uma decisão prática, de sobrevivência. Nem todo mundo pode
escrever como Van Gogh pintava quadros.
– Qual o
limite entre a arte e o mercado? Se não temos leitores, se não vendemos nossas
obras elas perdem sua qualidade ou “função”?
– Essa questão
do mercado de literatura é muito complexa. Acho que passei um pouco por ela
algumas respostas atrás. Mas os problemas essenciais estão mesmo na formação do
leitor e no período crítico que vivemos. Boa parte do que vende muito tem pouca
qualidade artística, literária, e muitos méritos de marketing. Particularmente,
acho uma pena. No entanto, é isso o que se apresenta como mercado. O que me entristece
é que haja pouco espaço para a circulação de boas produções locais. Colocar um
livro na prateleira de uma grande livraria, por exemplo, é uma afronta: os
valores cobrados por essas livrarias é um acinte. Os espaços para escrever e
para falar também são mínimos, circulam entre pequenos grupos, não se espalham
e há sempre algo de amor febril em tudo isso, uma espécie de arroubo juvenil que
tem pouco lugar no mundo dos adultos.
– Sua
desistência gerou em nós, autores não militantes, um desânimo e uma vontade de
lutar. O que fica de sua decisão para quem está como você ou para os que estão
querendo começar?
– A minha
decisão tem caráter muito pessoal e nenhuma intenção de ocupar o lugar de
mártir da literatura. Até porque eu preciso muito mais da literatura do que ela
de mim. A minha decisão dá conta de tentar me livrar da angústia de querer,
precisar escrever, mas não encontrar tempo, condições reais para isso. Não
conseguir encaixar a escrita literária nos meus dias é algo que me machuca. E
conviver com esse sofrimento tem sido um bocado cruel para mim. Minha
desistência de escrever é uma tentativa de normatizar a impossibilidade de o
fazer. Espero sinceramente que funcione. Para os que estão começando, desejo
que consigam cumprir o caminho que não consegui, ou que só consegui
parcialmente. Talvez as necessidades de quem está começando sejam diferentes
das que tenho hoje. O amor febril já moveu minha literatura. Hoje há um amor
maduro que compreende seu espaço em meu coração e que, por isso, tenta se
recolher diante da impossibilidade da convivência. Sinatra cantava que amar é
fácil, viver é que é difícil. Não vou duvidar de Sinatra. Mas torço muito para
que ninguém desista de escrever depois de mim. Quero antes que haja bons e
novos escritores, aqueles que possam alimentar leitores como eu, ainda ávidos
por bons textos.
– O poeta
Leontino Filho definiu sua decisão como corajosa, mas acredita (ou deseja) que
a “a desistência será temporária, pois a força da literatura e, sobretudo, da
poesia é superior à própria vontade do poeta”. Como você recebe esta
observação?
– Minha
admiração por Leontino é tão grande e tem tanta base no que ele já escreveu e
disse que eu jamais o confrontaria, jamais diria que ele está errado. Não sei
se há muita coragem na decisão que tomei. Talvez seja como o caso dos suicidas,
a quem alguns atribuem uma imensa coragem por tirarem a própria vida, enquanto
outros chamam esse ato extremo de covardia diante do medo de enfrentar a vida.
Há algo de um suicídio literário nisso e não sou eu quem vai julgar se fui
corajoso ou covarde. Se Leontino diz que fui corajoso, confesso certo orgulho
nisso. É bom ter um elogio, mesmo que numa situação de tristeza, de alguém como
ele. Fato é que hoje estou abrindo mão do exercício da escrita. Já havia me
afastado dela antes, mas consciente de que voltaria, o que fiz de fato. Hoje me
parece muito claro que não voltarei a escrever, mas Leontino está certo sobre
tantas coisas que eu realmente não ousaria dizer que ele está errado nesta
questão. No entanto, espero, honestamente, não voltar a escrever.
– Ainda há
girassóis sobre a mesa grande da sala?
– Esta é uma
pergunta muito bonita. Deixei alguns girassóis sobre a mesa grande da sala. E
espero que eles sejam bonitos o bastante para que haja sempre alguém disposto a
cuidar deles.
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