A GUERREIRA PAIACU



A batalha da mulher é constante pela liberdade e igualdade de direitos, mas a luta de Lúcia Tavares excede o limite do gênero. Ela quer resgatar um povo inteiro e faz isso como sobrevivente de uma tribo que diziam ter sido dizimada e à luz de uma guerreira assassinada brutalmente apenas por ser indígena.

A mitificação da figura do índio levou nosso povo a buscar por insígnias e imagens pitorescas. Pessoas nuas, violentas, de arco de flecha. Teria sido essa a imagem encontrada pelos irmãos Nogueira, portugueses ditos colonizadores da ribeira do Apodi, na segunda metade do século XVII? A história recente mostra que não, mas ela ainda não está nos livros que continuam pesquisando em registros documentais e esquecendo de ouvir as pessoas mais velhas e descobrir suas histórias escondidas.
Lúcia Maria Tavares vai pedir na justiça para retomar o nome antigo de seu povo. Quer ser chamada de Lúcia Paiacu Tabajara, em referência às etnias de seus pais. Sua luta pelo reconhecimento dos povos Paiacus tem vencido o tempo e gerado discussões em diversos níveis, a maioria de segregação.
Antes de os “brancos” chegarem à estas plagas, os conflitos e teimas aconteciam entre grupos locais originários, trazidos para essa parte do continente pelo próprio tempo. Registros históricos revelam movimentações de caçadores coletores na América há mais de 35 mil anos. Na chapada do Apodi, estudo paleontológicos atestam – com registros rupestres – que os homens antigos já habitavam este sertão há pelo menos 5 mil anos.
A história moderna registra os relatos de pouco mais de 300 anos como sendo os verdadeiros. Conflitos entre armas de fogo portuguesas contra etnias diversas no médio Oeste dizimaram grande parte dos povos originários. Após a expulsão dos holandeses, que costumavam se aliar aos povos indígenas, em 1645, os portugueses se tornaram mais violentos ao ampliarem a colonização no interior.
Os Cariris ao se interiorizarem se subdividiram em diversos outros povos: Tarairiú, Janduís, Paiacus, Canindés, Surucus, Tabajaras, Icós entre outros. Aliados dos holandeses, é atribuído aos Janduís, índios guerreiros, parte da cena histórica dos mártires de Cunhaú e Uruaçu (1645), mas também apoio aos portugueses em 1599 no conflito que matou 400 Paiacus e prendeu outros 250, incluindo mulheres e crianças.
Quando os episódios envolvem homens brancos, a história registra como luta por território, mas quando se refere aos indígenas a coisa muda de figura. As memórias escritas apontam os índios com termos pejorativos: selvagens, bestiais, infiéis, traiçoeiros, canibais e poligâmicos e, finalmente, bárbaros.
Há indícios ainda de que a terminologia “tapuia” vem da marreca com o mesmo nome que por ser muito rápida e ágil “só se pega na bala”. Mesma coisa que fizeram com os negros do Pega, em Portalegre, analogia aos jumentos pegas, animais selvagens que só se alcançava “a casco de cavalo”. Aliás, forma igual que se usava para prender os índios no sentido de escravizar os homens ou estuprar as mulheres.
A destruição da imagem indígena se alastra pelo tempo e nem a miscigenação foi aceita pelos ditos “brancos”. Mamelucos, cabocos, caiçara ou cariboca foram perseguidos ou excluídos da sociedade em proporção nunca medida.
Para sobreviver, muitos lutaram, morreram e se misturaram. Mas outra maioria fugiu, trocou de nome e escondeu sua verdade. Desde cedo, Lúcia Tavares, morena de pele bonita e cabelos pretos, tinha curiosidade pela história de seus pais, que em momentos de discordância se acusavam de “selvagens” e depois exigiam mudar de assunto.
Sebastião Clementino Tavares viveu a vida toda na agricultura. Maria das Neves da Conceição era lavadeira de roupa. Os sobrenomes não revelam, mas a peculiaridade genética deles e de seus pais escondiam algo pouco comentado. Ambos, segundo levantamento de Lúcia, são oriundos das tribos Tabajara (Sebastião) e Paiacu (Maria).
Como eles, muitas famílias de Apodi trazem traços curiosos e alguns mantém, inclusive, nomes que revelam possível existência de subtribos (famílias): Potim (Poti), Cará, Macaco, Peba e Porróia são grupos muito bem definidos e conhecidos de todos na região que, nas pesquisas de Lúcia, revelam muito sobre a sobrevivência daqueles que se diziam extintos.


Lúcia Maria Tavares nasceu em Apodi no dia 18 de janeiro de 1961. Oriunda do sítio Córrego, na região da areia, teve uma vida muito carente, mas sempre foi uma pessoa curiosa e desde a infância tinha curiosidade na história de seus bisavós que diziam ter sido “pegos a casco de cavalo”. Quando perguntava, sua mãe dizia que “era uma história muito feia”, demonstrando vergonha daquilo que seus pais a mandavam esquecer.
Estudou no antigo colégio Isauro Camilo de Oliveira, conhecido também como “grupo de pés descalços” por atender pessoas pobres da região do Alto, em Apodi. Fez apenas até a 5ª série. Aos 16 anos largou a escola para se casar com Erione Marinho de Paiva com quem conviveu durante cinco anos e teve um filho: Abdala Paiva, hoje com 41 anos.
Quando se separou, passou muita dificuldade financeira, mas o estopim para mudar de vida começou em uma prévia do natal, quando ela não tinha como dar um simples brinquedo ao filho. Lembrança que lhe entala a garganta e mareja os olhos até hoje.
Decidiu ir a São Paulo em busca de melhoria de vida, como fazia grande parte dos nordestinos àquela época. Instalou-se na casa de parentes e logo na primeira semana conseguiu emprego de cuidadora de uma idosa de 90 anos. Ficou no trabalho seis meses quando uma amiga, de nome Joana, lhe ofereceu ensinar a costurar. Aprendeu logo. Começou a produzir “japona” um tipo de jaqueta vendida por bolivianos no Brás.
– Em São Paulo passei muito sufoco e necessidade, mas em Apodi era pior, sem amparo algum – lembra Lúcia.
Devido à rotina puxada da capital paulista, mandou o filho de volta a Apodi para morar com o pai, mas nunca lhe deixou faltar nada. Só queria voltar do Sudeste quando tivesse condições de comprar uma casa.
O trabalho com as jaquetas abriu a possibilidade de entrar numa grande empresa de fabricação de camisetas. Lá se profissionalizou e pode ir mudando de empresas conforme as condições e salários oferecidos. Nesta trajetória, terminou produzindo alta costura em ateliês famosos com os estilistas Paulo Dolce e José Nunes.
A partir dos anos 2000, com melhores condições financeiras, começou a voltar a Apodi com mais frequência e a se organizar para ficar de vez. Ia a São Paulo periodicamente apenas complementar a renda e manter os laços construídos por lá.
Apesar dessas idas e vindas, uma coisa que nunca lhe saiu da cabeça foi a história de seus parentes e antepassados. Em uma discussão fútil com uma amiga que defendia suas origens europeias, Lúcia reclamou que fazia parte dos grupos originários do Brasil e que aquilo era muito mais importante do que as supostas relações europeias citadas nas esquinas.
Para reforçar a sua luta, montou, em 2012, uma barraca no centro de Apodi num protesto em favor dos povos Paiacus. Chamou atenção, conquistou apoios, mas também críticos. Chegou a ser chamada de “selvagem”.
A partir desse momento as datas são imprecisas. Por volta de 2013, conheceu o historiador Alcides Bezerra Sales que lhe apresentou os Potiguaras, movimento indígena do RN. Havia gravado um CD com depoimentos de encontro que tinha tido com os Jenipapo-Canindé, de Aquiráz/CE, em busca de resgatar sua história e decidiu ir à Funai, em Natal, em busca de apoio.
Embora tenha se apresentado como da etnia Paiacu, foi confundida como dos grupos cearenses e não teve muito sucesso. No entanto, conheceu Taís Campos, potiguara do Amarelão, e se envolveu em uma ação que estava se desenvolvendo nos prédios do IBGE e da UFRN.
Ao se aprofundar na história de seu povo, ganhou a confiança de Martinho Alves de Andrade Júnior, coordenador da Fundação Nacional do Índio (Funai) e então pode começar, oficialmente, a defender sua história e a trajetória de sua gente.
Hoje, Lúcia é reconhecida como cacique guerreira do povo Paiacu. Com esforço descomunal para alguém que age praticamente sozinha, levantou uma série de artigos históricos que remontam a sobrevivência dos povos originários. Algumas das peças são datadas de milhares de anos.
Nasceu, desse esforço, o Museu do Índio Luiza Cantofa em homenagem à grande guerreira Paiacu, brutamente assassinada em Portalegre em 1825. A instituição, vinculada à Rede Fórum de Museologia, funciona de forma improvisada em sua casa na rua Antônio Lopes Filho, mas ela está em meio a uma grande luta ao tentar adaptar o museu no antigo prédio do Balneário da lagoa do Apodi. Lugar perfeito para abrigar um museu Paiacu, às margens da lagoa que sustentou por séculos esse povo.
A Funai tem realizado um trabalho de reconhecimento dos povos indígenas do RN há muito tempo. O Estado tem em média 10 mil indígenas auto reconhecidos em várias partes de seu território: Sagi, em Baía Formosa; Catu, em Goianinha e Canguaretama; Mendonça do Amarelão, em João Câmara; Banguê e Caboclos, em Assú. Muitos outros povos estão neste processo graças a figuras como Lúcia que coloca neste mapa mais uma denominação: os Paiacus do Apodi. Ela faz jus à sua história, pois eram conhecidos como povos pacíficos, mas também grandes guerreiros.
Encontrei Lúcia Tavares na quarta-feira de cinzas para uma conversa há muito prometida. Somos confrades da Academia Apodiense de Letras (AAPOL), o que me permite acompanhar parte de sua trajetória no movimento indígena.
Cada apodiense, sobretudo os pardos, como eu, tem certa obrigação de conversar com Lúcia e entender parte desta história no sentido de se encontrar e, talvez, confirmar dados importantes da trajetória familiar.
Não posso confirmar, além do que foi descrito por Darcy Ribeiro e outros sociólogos, que sou indígena, mas não há dúvida de que cada brasileiro carrega certa percentagem desse sangue.
Outra questão importante neste encontro é a percepção dos fatos narrados. Basta olhar nos olhos de Lúcia para encontrar nela alguém decidida, como se o espírito de Cantofa a guiasse na luta tremenda de manter viva a história de um povo que, na verdade são vários, e somos todos. Sobre isso começamos nossa conversa naquela tarde quente.
– O que é ser uma índia Paiacu?
– É uma coisa muito forte, um amor muito grande que sinto pelo meu povo que tem uma história tão sofrida.
– A luta é maior sendo você uma mulher?
– É, é sim. Dizem que estou inventando, que sou maluca... é, maluca, né? (Pausa). Engraçado, chamar a pessoa de maluca porque tá contando a história de sua família. E essa família tem nome. O nome da minha família é Paiacu, direito que foi tirado, mas que lutarei para ter em meu nome de volta.
– Esses insultos lhe atingem ou lhe motivam?
– Não estou nem aí pra eles, sabe por quê? Porque eles não sabem da história e fica feio é para eles que não sabem a própria história.
– Por que as pessoas não querem enxergar os povos indígenas?
– Por ignorância, porque índio foi um apelido que botaram. Essa terra tinha dono e foi tomada. Esse povo tinha nome e foi tirado. Esse povo existe, nunca deixou de existir. Apodi foi fundada dentro de uma aldeia. Acham que Luiza Cantofa foi a última Tapuia, mas para nós não interessa o que dizem os livros, interessa é a história viva das famílias no dia a dia, na alegria e na dor.
– O que a luta indígena ensina sobre a vida?
– Ensina muita coisa. Primeiro a lutar, muita humildade, respeito pelo próximo, respeito à terra, à natureza, aos idosos, eles que tem sabedoria para contar e guardar as histórias.
– O que mudou em sua vida, enquanto mulher, depois dessa luta?
– Ah, parece que tem homem que tem medo. (Risos). Mas, eu só tenho a agradecer. Sou muito agradecida a Deus. Encontrei alguém que, podem dizer, tão doido quanto eu, para batalhar comigo, para me ajudar na restauração do prédio do museu. Porque não é fácil a luta. O padre é quem está nos ajudando com cesta básica, porque nós não temos nada, não temos dinheiro para construir esse prédio.
– O que espera acontecer em sua vida daqui pra frente?
– O futuro a gente não sabe, mas o que eu quero é concluir o prédio do museu que é patrimônio do Apodi, de todos nós. É como o coordenador da Funai disse: uma importância tão grande, mas Apodi não está nem aí. E a importância não é só para Apodi, mas para o Rio Grande do Norte e o País, porque este é um dos poucos lugares que tem conseguido reunir peças de nossos caçadores coletores de cinco a 11 mil anos.
– Você sofre, já sofreu ou teme sofrer alguma ameaça de morte por causa da luta indígena?
– Sim, eu tô passando por um problema muito sério. Mas ninguém vai me intimidar...
– Você tem medo que o índio perca esta nova guerra?
– Estamos vivendo uma guerra constante. Nosso povo está constantemente sendo morto em muitos estados, inclusive crianças, mas a mídia não mostra isso. Nosso país é uma colonização sem fim, a verdade é essa.
– Qual a sensação de ser esquecida e renegada?
– Uma ignorância muito grande. Ignorância das pessoas acharem que quem povoou este Nordeste foi só o colonizador.

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