UMA QUESTÃO DE DESTINO




Até 2006, Igor Fortunato não sabia o que faria da vida. Hoje, além de integrar a mais importante companhia teatral do RN, acaba de ser eleito o melhor ator potiguar de 2018. Seu amor pela arte o transformou em uma estrela viva, graças a seu estado de alma livre e transgressora.

            Eleito melhor ator de 2018, pelo Troféu Cultura, Igor Fortunato vive o seu melhor momento no teatro e talvez na vida. Em turnê por 22 estados com a peça Meu Seridó (melhor espetáculo), ao lado de Titina Medeiros (vencedora na categoria melhor atriz) e César Ferrario, realiza um sonho – na verdade é o início de um sonho – que começou por acaso.
            Nascido Igor Fernando da Silva, às 8h04 da manhã do dia 27 de junho de 1992, em Mossoró, escolheu Fortunato em homenagem ao bisavô e, sem querer, atraiu para si a fortuna do destino. Fruto de um “aborto paterno”, como ele mesmo diz em sua bem definida posição política, é filho da enfermeira Fernanda Cristina da Silva e tem apenas uma irmã, a Maria Fernanda de 15 anos.
             A base vem desse bisavô, um vaqueiro simples dos sertões deste Estado. Alma feita em pedra que susteve a sobrevivência a custa de muito suor, o que imprime a obrigação do trabalho não como escolha profissional, mas como necessidade.
            Lidar com isso foi um dos maiores fantasmas na vida de Igor. Havia uma pressão muito mais simbólica do que real. Ajudar a família, ter um trabalho que pagasse as contas e assegurasse aquele futuro determinado pela cultura vigente.
– Na cabeça de minha família, o sucesso e a realização para a minha vida viria com um trabalho que me desse retorno financeiro. Não os culpo, essa era a realidade que eles tinham de encarar, o que fizeram muito bem. Eu nasci de alma livre, transgressora, ser ator era o absurdo dos absurdos, era fase, mais uma fase que nunca passou.
Ser quem é tornou-se, então, o seu maior desafio. Algo que permanece em sua trajetória como artista, posição que encanta, mas que tem pouca aceitação ainda na cultura brasileira, considerando o senso-comum sobre o trabalho.
Igor não foi um rapaz de muita paciência para o estudo e é a prova de um erro comumente cometido pela Educação no Brasil em sua perspectiva tradicional. Nossos currículos continuam forçando o professor a olhar o pontinho preto na folha em branco e, desse jeito, o aluno que não tira boas notas, ou que não se tornar médico, advogado ou megaempresário terá, em certo degrau, uma referência menor no aspecto do sucesso.
A impaciência para a escola, apesar de não ser mau aluno, não se construía pela ausência de inteligência, na verdade era justamente o contrário. Ele queria se expandir, mas não sabia como. Foi aí que Márcia, uma colega de classe, identificou nele a possibilidade de fazer teatro.
– Até então, jamais me havia passado pela cabeça fazer teatro. Na época, quando eu olhava para o futuro, eu não me imaginava ator.         
Célia, sua professora de Português na Escola Estadual Moreira Dias, em Mossoró, percebeu que Igor, então com 14 anos, tinha boa dicção e o chamou para o grupo de teatro Mil Faces, com vistas a participar do Festival de Teatro da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Festuern).
– Pronto ali, naquele ambiente escolar, fui mordido pelo bichinho do teatro. Não houve um momento em que eu disse, sou ator. Meu desejo é experimentar dessa arte, brincar com as suas inúmeras possibilidades, mas em nenhum momento eu determinei, pronto agora sou ator. Aconteceu e eu me toquei que havia acontecido. Acho que o teatro foi uma via de escape que entrou na minha vida pra me salvar e espero nunca sair dele, seja como ator, seja como expectador.
A arte modifica o homem, assim como a mudança de paradigma refaz a Educação. A parceria da escola com a Universidade construiu, dentro da escola, novos caminhos além do tradicional método de ensino e trouxe não apenas oportunidades novas, mas também conhecimentos outros, necessários ao desenvolvimento humano daquele rapazinho franzino e meio perdido na vida.
– Lembro que durante a montagem do espetáculo Marcos Leonardo foi nos visitar e, após o ensaio, começou a falar sobre teatro. Eu, adolescente, olhava abismado pra aquele homem e pensava: ele sabe de tanta coisa, eu queria ser igual a ele.
Hoje, tendo Marcos Leonardo como um parceiro de trabalho – um mestre de teatro e de vida, por quem nutro profunda admiração – penso que caminho pela trilha certa em direção ao que desejo.
Por precisar seguir a mãe que se mantinha entre Natal e Mossoró, Igor foi meio nômade na escola e não conseguiu concluir a faculdade de Arquitetura. Desde aquela peça apresentada no Festuern há 13 anos, que não por acaso teve como título “Uma questão de destino”, Igor Fortunato decidiu que seria ator e é isso que se tornou profissionalmente desde então.
– Enfrentei dificuldades em casa para ser ouvido, pra que eles percebessem que isso seria o que eu faria da minha vida. Acho que os venci pelo cansaço. 
Depois de alguns anos, ver minha mãe assistindo uma peça de teatro minha, foi uma realização tão grande quanto ganhar um prêmio de melhor ator. 
Aos 18 anos voltou para Natal, dessa vez sozinho, e lá viveu momentos muito difíceis. Pouco dinheiro, fome, dificuldades, solidão, tudo na busca de não deixar apagar a chama que ardia em seu peito. Continuou mesmo assim e saiu vivo e um pouco mais forte. Hoje segue acesso, com uma chama capaz de incendiar Roma.
Viver de arte é complicado, mesmo para grandes nomes, mas, como qualquer profissão liberal tem altos e baixos e é isso que torna esse desafio cotidiano. Além das batalhas diárias para fazer teatro, dentro de uma realidade de pouco incentivo fiscal, Igor precisa se manter firme, mesmo quando as dificuldades parecem maiores do que a própria cabeça.
– Agradeço ao universo por cada uma das dificuldades que me foram impostas. Acho que aprendi o que a minha jovem e imatura consciência conseguiu assimilar. O que me ficou de aprendizado foi descobrir que eu tinha uma força que desconhecia; que minha paixão desmedida por essa profissão me fez e faz seguir lutando. O teatro me salvou, e me salva a cada dia.
Sua atual trajetória começou em 2017, quando estava no Rio de Janeiro fazendo teste para uma novela da Globo que não rolou. Lá conheceu Titina que o acolheu e o levou para conhecer parte do ambiente que estava vivendo. Depois disso vou para Natal e em seguida veio para Mossoró fazer o espetáculo “Chuva de Bala no País de Mossoró”, edição na qual Titina foi assistir.
– Um pouco depois que acabou o Chuva, Titina me faz um convite para compor o elenco do espetáculo Meu Seridó. Ela me liga, me convida e me diz que vai me dar um tempo pra eu pensar. Eu disse: não preciso de tempo, eu topo! E aqui estou. Trabalhar ao lado desse elenco, guiados por César Ferrario, tem sido um dos momentos de mais aprendizagem humana e teatral que pude vivenciar até agora na minha carreira.
No ano passado, quando voltava de um festival de teatro em Santiago (Chile), Leo Souza, apresentador do Rota InterTV, que tinha conhecido em 2016, o convidou para interpretar um Sheik árabe para o quadro Lata Velha, do Caldeirão do Huck. Topou e foi bastante elogiado pela atuação. No mesmo ano, foi convidado para uma série da Netflix. O projeto também não rolou, mas mostra que as portas estão se abrindo a seu tempo, embora isso não o abale tanto.
– Não acho que o sucesso esteja nesses lugares de tremenda exposição, acho que o sucesso é ter trabalho digno e artisticamente interessante.
O ano de 2018 foi, de fato, seu ano. Ao mesmo tempo em que rodava com o espetáculo Meu Seridó, realizou no Teatro Dix-huit Rosado o musical Igor Canta Caetano. Por estes dois trabalhos foi indicado quatro vezes no Troféu Cultura: Melhor Ator, Melhor Cantor, Melhor Show e Artista do Ano. Venceu na categoria Melhor Ator, mas teria vencido também se tivesse uma categoria mais indicações. Só a Orquestra Sinfônica do RN teve quatro recomendações, mas com projetos de pessoas diferentes.
– Não esperava ser indicado, muito menos esperava ganhar. Mas acredito que é fruto de um trabalho árduo e diário, é um reconhecimento pelo esforço, mas o glamour tá na lida. Eu quero é seguir trabalhando com dedicação, se vierem prêmios, ótimo, se não, a gente segue trabalhando.
Em pouco mais de uma década de carreira, acredita que seu melhor trabalho será o próximo ou o que lhe desafiar mais. Prefere olhar a trajetória, desde quando começou, acreditando serem muito generosos para ele a vida e o teatro. O Meu Seridó é sua paixão desde 2017, mas destaca outros trabalhos que lhe ajudaram a caminhar até aqui: Uma questão de Destino, 2006, a primeira peça; A comédia dos erros, 2009, o primeiro trabalho profissional; e Pedro Vermelho, 2018, seu primeiro monólogo.
Igor é expansivo, carrega uma aura que nos acende e uma beleza natural de grandes artistas. Exibe uma autoestima necessária ao sucesso de qualquer profissional bem sucedido. Tem do seu lado as pessoas certas e as melhores referências em sua área: Tony Silva, Marcos Leonardo, João Marcelino, Nara Kelly, Titina Medeiros, Patrícia Selonk, Ilva Nino, Simone Mazer, Luís Melo, Gabriel Vilela.
O conheci em 2014, através de Katharina Gurgel, quando do lançamento do meu primeiro livro de poemas: Catálogo maçante das coisas comuns. Ele interpretou o poema “homempalavra, elegia tardia a antônio de zé de chico”. Compreendeu o poema numa dimensão maior do que eu esperava e fez dele uma mescla de monólogo e musical com sons africanos. Ganhou definitivamente meu respeito e carinho dali em diante.
Desde então, sigo sua trajetória e nos trombamos por aí. Falta a nós tomarmos uma cerveja, falar mais sobre poesia. Talvez consigamos em breve, mas, enquanto não acontece, conversamos meio que por telefone, por e-mail e dessa conversa extraí um papo muito bacana sobre teatro, política e vida. É o que segue.


Qual o preço da juventude? É possível ser jovem a vida toda?
Eu ainda não consigo ter uma resposta concreta sobre isso. É difícil falar quando se está inserido nela, mas tenho uma leve impressão de que a inconsequência, a falta de experiência, as urgências e a energia desmedida nos levam a ações que nos demandam reparações, a falhas. Porém, também acredito que sem isso não se chega ao entendimento. Errando se aprende a não errar. A experiência, a maturidade, diz do seu histórico de erros acumulados e do que você aprendeu com isso. Sobre ser jovem a vida toda, quando eu fizer 90 eu volto e respondo. (Risos) Mas tenho a leve impressão de que sim, é possível.
Estar no teatro é viver um sonho constante?
– É sonhar olhando para as realidades, para o cruel, para o escárnio da vida sem perder o encanto. 
Em um mundo tão grande, como lidar com o tempo das coisas?
– Acredito que aprendendo a esperar. No Teatro a gente aprende muito que precisamos aprender a respeitar o tempo do outro. O tempo do outro ou das coisas alheias são sagrados. 
“Viver é melhor que sonhar?”
– Pra mim essa máxima é uma dízima periódica, porque sem vida não há sonho, e sem sonho não há vida.
O palco obriga a desnudar-se, de alma e corpo. Por que a nudez – que deveria ser comum – desconserta tantas caras? 
– A nudez já foi a matéria prima de arte sacra, a nudez é real e presente na nossa sociedade. O problema é a quem ela serve. Quando a nudez serve ao machismo, quando a nudez está estampada na capa da revista Playboy, para o deleite sexual, ou no carnaval para alimentar o fascínio sexual de um imaginário de devassidão brasileira, ela não incomoda, mas quando o artista questiona a sociedade e escancara a realidade às vistas dos conservadores, consumidores do nudismo, ela passa a incomodar pelo fato de tocar na ferida da hipocrisia.
Todo artista deveria ser um revolucionário, um lutador contra o conservadorismo, ou isso não deve ser misturado com as artes?
– Revolucionário sim, porque a arte é a transmutação da consciência humana em ação. E ela perpassa por questões diversas, questiona, indaga, aponta caminhos, ou apenas relata. A arte tem poder de transformação social, por isso, a revolução pela arte, eu acredito que será a revolução mais efetiva que um dia poderá acontecer nesse país. E o artista é a via de condução dessa revolução. Não pode, em seu ofício, se omitir de questões sociais políticas e humanas. O próprio ofício não permite. Arte não é entretenimento, arte é necessidade real.
O teatro corre risco com a atual situação política do Brasil?
– O teatro nunca vai deixar de existir. Eles podem até tentar fazer isso, porém o teatro é muito maior do que eles. Podem nos tirar recursos, incentivos, meios, nos continuaremos ali, achando novos caminhos, novas formas, mas não tentarem nos calar. Calados, faremos um barulho muito maior.  As estruturas físicas e financeiras correm riscos, a arte não. Nós somos um vírus e contra o teatro ele não tem vacina. 
Do que você tem mais medo, da censura ou do fracasso?
– Censura. Fracassos são muitos que vivemos durante toda a vida. Só fracassa quem tentou e eu quero continuar tentando. Censura é um absurdo que não podemos nem cogitar a possibilidade.
Aliás, o que é o fracasso?
– É um fato corriqueiro na vida de um ser humano, ao qual não somos educados para lidar. Porque parece que tudo sempre tem que dar certo. Fracasso é tentativa de acerto. 
O que você espera deixar para o mundo ao final de tudo?
– Mais imaginação, mais sonhos, mais vida.

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