RESILIÊNCIA NO ESPELHO




Admirado como professor e formador de opinião, Ailton Siqueira aprendeu a ler aos nove anos de idade e sempre teve dificuldade de lidar consigo mesmo. Estes, no entanto, foram elementos fundamentais para definir o seu caminho na vida e lhe dar condições de ajudar outras pessoas a se compreenderem no mundo.

            Consta na biografia de Clarice Lispector que, certa vez, ela convidou a amiga Olga Borelli a seu apartamento e lhe entregou uma carta destinada à própria Olga. Ao abrir a correspondência, entregue pessoalmente ao destinatário, leu, entre outras frases o seguinte trecho: “Eu achei, sim, uma nova amiga. Mas você sai perdendo. Sou uma pessoa insegura, indecisa, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer comigo.”
            Esta passagem remete muito a minha relação com o biografado de hoje. Nossa história é um pouco mais confusa e começa com diversos desentendimentos provocados exatamente pela fragilidade. Como disso Morin “temos todos o mesmo destino porque vivemos com os mesmos problemas, medos e tensões.”, contudo, recorro a Shakespeare para lembrar que “os covardes morrem várias vezes antes da sua morte” e é por isso que minha amizade com Ailton Siqueira é um claro exemplo de superação e resiliência.
            Em certo momento de minha ignorância jovial disse que, apesar de conhecer pouco, não gostava de ler Fernando Pessoa. Ailton então me disse que, talvez, eu devesse conhecer mais para ter clareza no meu juízo de valor.
            Imediatamente entendi aquela observação como uma afronta e, a partir dali, passei a tratá-lo como adversário. É que Ailton mistura timidez com senso de humor e, para os desavisados, isso pode parecer sarcasmo ou algum tipo de arrogância. Anos depois, decidi escutá-lo quando, depois de muita insistência dele, disse que gostaria de me orientar em um trabalho acadêmico. Confrontei-o e descobri que havia perdido um tempo imenso de oportunidade para aprender sobre ciência e a vida.
            Inscrevi-me em uma de suas disciplinas especiais do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas e vi nosso mundo mudar completamente. Aprendi não apenas a compreendê-lo como a me perceber de outras maneiras. Dali em diante, não me afastei mais de Ailton e passei a olhar a sua fragilidade como um espelho, uma fortaleza construída com vivência e conhecimento.
            Bauman disse que a incerteza é o habitat natural da vida humana, pois foi sempre o chão familiar da escolha. Escolhi me afastar de Ailton com medo de mim mesmo, mas depois descobri que nos parecemos em vários aspectos e que quero me parecer em muitas outras qualidades.
            É muito interessante falar sobre isso porque nossos medos não nos limitaram. Apesar de agigantarmos nossas preocupações e dúvidas, construímos nossos caminhos e respeitamos nossas opiniões ao amadurecer dos dias. Superar é o princípio da resiliência, superar é avançar apesar de tudo.
            Tem duas frases de Freud que cabem perfeitamente nesta história. Em uma ele disse que “qualquer coisa que encoraje o crescimento de laços emocionais tem que servir contra as guerras” e na outra que “a inteligência é o único meio que possuímos para dominar os nossos instintos”. É bem isso que tem acontecido.
            Ailton é um sujeito extraordinário. Uma figura que não se nega a expor seus sentimentos, nem a falar de seus anseios. Faz disso um portal para o autoconhecimento como quem diz: “conhece a ti mesmo e te supera”, parafraseando a máxima do templo de Delfos.
            Doutor em Ciências Sociais é um dos professores mais concorridos da UERN em sua área. Daqueles que mantém a sala cheia de atenções interdisciplinares e que não esconde as emoções ao final de cada ciclo. Cada um deles lhe rende um novo grupo de amigos e futuros orientandos. Mas nem todos os que o veem em seu conforto professoral conhecem o esforço que ele teve de fazer para chegar até aqui.
            Há muitos desafios na vida, mas nada maior do que você mesmo. Ailton é seu próprio dilema e “ser” continua sendo o seu grande desafio diário.
– Passei muito tempo achando que não superava minha timidez e a imagem feia que tinha de mim mesmo. Mas aos poucos fui percebendo que eu não posso fugir de mim mesmo, que não tem como eu me esconder de mim. Estou – como todos nós – condenado a ser quem sou. Há coisas em mim que eu não escolhi, mas posso escolher o que fazer com elas. Quando percebi isso, minha vida ganhou outros sentidos. Hoje, tento ser amigo de mim mesmo, não ficar me julgando o tempo todo. Tento me compreender e aceitar a vida como ela é e não estar brigando por outra vida.
Para ele, “ser” é uma das questões mais urgentes e humanas que conhece, sobretudo neste mundo cheio de pessoas vazias de si, perdidas em seus desejos, sem sonhos para viver, possuídas por medos de todas as dimensões.
Durante muito tempo pensou que desafio era aquilo que está à sua frente, aquilo que tem de enfrentar e conquistar. Hoje pensa que o maior desafio de sua vida não está fora de dele, como algo que está por vir, e sim algo que está aqui e agora.
            Ailton Siqueira de Sousa Fonseca nasceu em um sábado, 6 de março de 1971, no sítio Canto Grande, município de Afonso Bezerra, na divisa dos municípios de Alto do Rodrigues e Ipanguaçu. Filho do agricultor Aldemiro Siqueira da Fonseca e da dona de casa Izaura Bernardo da Fonseca, ambos com 74 anos, é o primeiro de quatro filhos do casal que teve ainda: Iris, Irismar e Iriane.
            Como a maioria dos meninos de sítio de sua época, aprendeu a identificar o mundo convivendo com ele. Entrou na escola aos sete anos, mas só começou a aprender a ler dois anos mais tarde. Na primeira escola, Manoel de Melo Montenegro, desenvolveu mais habilidades matemáticas do que de leitura, pois havia contextualização com suas funções na lida do sítio.
– A vida diária no campo já exigia de mim o aprendizado de contar as cabeças de gado, a quantidade de ovelhas no pasto, a quantidade de galinhas no terreiro etc.
Interessante sua lembrança de que, em sua infância, ler era mais comum entre as mulheres, mas foi um senhor barbudo, que não lembra o nome, que lhe deu aulas mais claras sobre a habilidade de interpretar as letras e palavras.
– Ele foi o primeiro e único homem que eu vi saber ler em Canto Grande. Foi ele quem leu para mim passagens da bíblia pela primeira vez. E foi ele quem tentou me ensinar a ler quando eu não estava na escola.
Ainda assim, foi preciso dona Izaura pagar uma professora particular para Ailton desarnar a ler.
– Não sei muito bem o porquê, mas eu imaginava que ler era algo mágico, que uma pessoa que sabia ler conversava com outros mundos e que eu não teria condições de aprender a fazer isso.
Ele não estava errado de tudo em pensar assim. Hoje sabe muito bem disso.
Da quinta ao primeiro ano do segundo grau estudou em Ipanguaçu, indo de pau-de-arara para a escola. Naquela cidade também iniciou o magistério no mesmo ritmo, até que em 1988 os pais se mudaram para Areia Branca. Lá conseguiu o primeiro emprego como professor dando aula no jardim da infância na Escola Municipal Vingt-un Rosado.
Apesar de tímido, calado e de ter começado a estudar mais tarde que os meninos de sua época, concluiu o ensino médio aos 17 anos sem qualquer reprovação. Menor de idade e sem documentação, só pode fazer o vestibular um ano depois, em 1990, sendo aprovado no curso de Ciências Sociais da UERN, em Mossoró.
– Insatisfeito comigo mesmo, achava que fazer Psicologia me ajudaria a obter as respostas e fundamentos necessários à mudança de mim mesmo. Não cursei Psicologia, porque em Mossoró (cidade mais próxima) não tinha. E eu não tinha condições financeiras de estudar em outro lugar.
No terceiro ano da graduação, teve a chance de participar do antigo Programa de Treinamento Especial, hoje Programa de Educação Tutorial (PET). Ali começou a nascer o pesquisador Ailton Siqueira que, atualmente, é quem dá oportunidades a jovens que buscam um lugar na vida, como ele fez um dia.
– O PET funcionava pela manhã e o curso a noite. Assim, eu vinha a Mossoró duas vezes ao dia. Muitas vezes voltava para casa em cima de caminhão que ia pegar sal (nas salinas de Areia Branca) e a noite retornava em um ônibus da prefeitura para continuar o curso.
Neste ritmo, graduou-se em 1993, embora tenha se esforçado bastante para não ser notado além das obrigações estudantis.
– Eu era tão tímido que não me olhava no espelho nem dava “a presença” em sala de aula. Para mim, a sala de aula era o lugar da escuta, eu estava ali para escutar a professora. Somava-se a isso o fato de eu não ter uma boa imagem de mim mesmo. Não me achava bonito e nem inteligente. Passei a quantidade de muitos anos com essa certeza sobre mim mesmo e, confesso, que ela não me abandonou completamente.
Como aluno especial de uma disciplina da especialização em Antropologia, começou a ler Edgar Morin e teve o primeiro contato com o “Pensamento Complexo”. Em 1996, entrou no mestrado em Ciências Sociais na UFRN e passou a integrar o Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM), primeiro grupo na América Latina a se dedicar aos estudos do “Pensamento Complexo”, coordenado por Conceição Almeida da UFRN, sua orientadora no mestrado.
Concluiu o mestrado em 1998, mesmo ano que passou no concurso para professor de Sociologia da UERN, onde trabalha desde então.
            Em 2003, saiu para cursar doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde continuou os estudos do “Pensamento Complexo” sob a orientação de Edgard de Assis Carvalho.
– Nunca tinha ido a São Paulo e a mudança de cidade foi uma revolução no meu mundo íntimo; foi a mudança de uma vida inteira, a construção de novos conhecimentos e novas aprendizagens de vida. Foi a superação dos meus medos e meus limites.
            Para quem aprendeu a ler ao nove anos e tinha medo de se posicionar em sala de aula, Ailton voou mais alto que sua própria condição. Lacan escreveu que “o desejo enquanto real não é da ordem da palavra e sim do ato”, mas disse também que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” e talvez, por isso, Ailton tenha se tornado um sujeito fascinado pelas palavras.
            Ele não conseguiu estudar Psicologia, como desejava, mas quando se abriu para a literatura, abriu a mente para a psicanálise, uma paixão que lhe acompanha há pelo menos dez anos de muito estudo e análise.
– A literatura, tanto quanto a psicanálise, é uma leitura profunda da condição humana. Venho aprendendo muito com elas duas, sobretudo, aprendo constantemente que não sei o suficiente. Foram elas duas que me ensinaram outra coisa: mostraram-me como era vasto e profundo aquilo que eu não conhecia em mim, no mundo e nos outros.
            Quando não está em sala de aula, está estudando a própria mente e compreendendo os lugares e as pessoas que lhe cercam. Gosta de tomar um bom vinho, uma boa cerveja, mas sua distração preferida é o refúgio que construiu em Areia Branca, próximo dos pais e do mar.
– Em Areia Branca eu gosto de sentir areia nos pés, vento no rosto, água salgada no corpo e sol iluminando meus olhos. Não sei explicar. Só sei me entregar a isso. E isso para mim é viver.
Quando propus a ele esta conversa sabia que não seria simples. Tomamos um café no Bagdá depois de um desencontro do destino na manhã de um sábado, seu dia de nascimento. Entender seu pensamento sobre determinados temas é primordial para compreendermos como ele pensa e vê o que está ao seu redor. Por aqui, deixo o resultado de muitos encontros e conversas que tivemos ao longo de quase uma década. Questões corriqueiras em suas aulas e centrais para os debates atuais sobre a sociedade e os comportamentos desses tempos líquidos. Foi por aí que começamos o nosso papo:



Em tempos digitais as pessoas pensam estar mais próximas uma das outras, mas a distância real está provocando uma solidão imensa. O que estamos nos tornando?
– É fato que a solidão sempre fez parte da história humana, mas hoje presenciamos o crescimento assustador de uma multidão de solitários. Solitários que tentam esquecer de si se refugiando nas realidades virtuais; pessoas que fogem de sua solidão se iludindo de estar na companhia dos outros. Confundem “estar perto” com “estar-juntos”, “estar se vendo” com “estar presente”, “conversar” com “companhia”, “estar ligados” com “manter relações”. Estamos vivendo hoje uma espécie de Babel moderna, semelhante àquela narrada na Bíblia. Estamos falando e não nos entendemos, estamos nos vendo, mas não apertamos as mãos uns dos outros, estamos virtualmente ligados, mas emocionalmente separados. Estamos solitários, porque não tem ninguém habitando nosso mundo íntimo. A solidão é o fim da solidariedade, do amor, da empatia e da convivência. E é disso que estamos, hoje, sofrendo no mundo. Uma multidão de solitários onde cada um só tem olhos para si mesmo. Um mundo assim não constrói projetos para o futuro, não constrói valores humanos e nem humaniza ninguém. A vida em sociedade não é uma escolha: é uma condição: ou vivemos juntos ou iremos desaparecer. Estamos esquecendo isso: temos que sair de nosso mundo para construir um mundo em comum. Temos que pagar o preço de sermos nós mesmos, mas só podemos pagar esse preço se estivermos com os outros. A solidão não constrói laços, não constrói amor, não constrói sociedade. Ao contrário, ela destrói, como já falei. Nenhum ser é capaz de se tornar humano vivendo sempre sozinho. Um dos grandes motivos da solidão é a insegurança e o medo do outro. Mas não podemos esquecer que, se o outro é nosso inferno, o outro é também é nossa salvação. Eu não posso ser eu fora das relações com os outros. Se precisamos reconstruir a sociedade, precisamos primeiro repensar e reconstruir o ser humano. O grande mal-estar desse mundo moderno é a falta de humanidade. A humanidade precisa de humanidade. E não podemos ser seres humanos sem amor, sem comunhão, sem compreensão, sem parceria, sem solidariedade, sem compaixão, sem empatia. Aliás, a falta de empatia é o grande sintoma desses tempos líquidos. Estamos olhando para nós mesmos, mas não enxergamos mais os outros em nós e nem reconhecemos nossos próprios rostos. Só enxergamos a imagem de nossas vaidades e nossos medos refletidos no espelho.
 – É possível se esconder do medo?
– Na história da hominização, o medo ocupou papel fundamental. O medo de ser devorado levou o homem a criar estratégias de proteção e sobrevivência. Os perigos e predadores estavam fora de sua casa, portanto, seu medo era externo. Ou seja: uma certa dose diária de medo ajudou a sermos mais sensatos, criativos e estratégicos. Mas o que vemos hoje é um medo generalizado e descontrolado, não construtivo. O medo não é mais do mundo externo, e sim de questões e inimigos internos. De forma mais geral, percebemos que na contemporaneidade há uma indústria do medo que tenta esconder o sujeito de seus medos externos vendendo a imagem de segurança: segurança com carros blindados, casas e condomínios fechados e vigiados 24h por dia etc. Essa indústria do medo, no fundo, no fundo, não está vendendo segurança e sim escondendo as pessoas dos seus próprios medos: o monstro amedrontador: o outro. Por outro lado, há a tentativa do próprio sujeito esconder seus medos: medo de seus desejos, de suas fantasias, suas fraquezas, seus preconceitos, medo de ser ele mesmo, de sofrer e o medo de se sentir realizado, de enfrentar aquilo que ele tanto pediu para viver. Pessoas assim tem medo de sua própria grandeza. É o que uma certa psicanalise chama de “Complexo de Jonas” (personagem bíblico): medo de se sentir realizado, de ser grande e não saber ligar com isso, porque ser grande exige muitos sacrifícios, superações e muitas responsabilidades. Há muitas estratégias para as pessoas se esconderem dos seus medos, mas todas elas fracassam, porque de si mesmo ninguém escapa. A literatura, os mitos e a psicanálise têm mostrado duas coisas importantes: quem vive fugindo de si não constrói grandes feitos e que, quem foge de sua sombra, perde sua vida. Por fim, é bom lembrar que a tentativa de se esconder do medo já revela outros medos: o medo de ter medo e o medo de enfrentar seus próprios medos. Quase sempre, quem tenta se esconder dos seus medos está com medo dele mesmo. Portanto, nossos medos dizem mais da gente do que nossos atos de coragens. Mas o mais importante é: podemos conhecer melhor aquilo que nos amedronta. Esse é um caminho possível, senão o único.
E do espelho, é possível se esconder da própria imagem?
– Ninguém enfrenta ou supera seus medos sem se olhar no espelho, sem se encarar. Também ninguém se torna alguém sem se olhar no espelho que é o outro. É possível tentar evitar o espelho, mas é impossível conseguir. O herói grego Perseu só conseguiu enfrentar a Medusa olhando para ela refletida no seu escudo espelhado, como se isto nos dissesse que só podemos enfrentar nossos demônios olhando para eles no espelho. Para mim, essa é uma das grandes lições do mito de Perseu e a Medusa: todo homem precisa descobrir por si mesmo uma estratégia para se salvar. E uma delas é olhando no espelho e vendo o monstro que ele tem que enfrentar. Não é fugindo que a gente se fortalece, não é fugindo que a gente supera nossos demônios. Sei que não tem como enfrentarmos aquilo que desconhecemos. Por isso que temos que olhar de frente aquilo que pode nos destruir. É isso que nos condena, mas também é isso que nos salva, porque sempre é possível conhecermos aquilo que ainda não é conhecido. Para mim, essa é uma das marcas do herói: enfrentar seus próprios demônios internos, aquele que supera seus medos mais devastadores, pois a fera que o guerreiro enfrenta está dentro dele mesmo. Portanto, mudar a imagem de si mesmo - superando o medo de ser - é um grandioso ato heroico, talvez o maior de uma vida inteira.
– Vivemos para o outro e em busca de um amor perfeito, mas se vivemos para nós mesmos dizem que somos egoístas e estranhos. Como equilibrar tanta coisa?
– Se vivemos para o outro e em busca de um amor, significa dizer que somos carentes, imperfeitos, incompletos. O amor existe porque somos assim: buscamos o que nos falta. Amor é, antes de tudo, falta. E se algo me falta é porque não sou autossuficiente. Todo amor é um sinal de carência e apego. Logo, não somos completamente egoístas. Até porque é pouco provável que alguém possa viver exclusivamente para si mesmo. Não podemos esquecer duas coisas: primeiro, que até mesmo o egoísta desenvolve seu egoísmo ao longo da vida, em certas circunstâncias, em suas relações com os outros. Segundo, que o egoísta, por mais estranho que possa parecer, ele também ama. Às vezes, recebemos o rótulo de egoístas simplesmente porque não nos encaixamos nas expectativas que os outros esperam da gente ou porque não nos comportamos como era socialmente esperado. Mais uma coisa sobre a questão que você colocou: o amor perfeito. Ora, se somos imperfeitos não podemos viver a perfeição de um sentimento que não veio para ficar eternamente. Uma das grandes causas de sofrimento amoroso é essa: as pessoas idealizam a perfeição da relação e querem encaixar o que sentem e o que vivem no que foi idealizado. Ou seja: queremos um amor perfeito que nos livre do sofrimento, mas esquecemos que ninguém sofre mais do que quando está amando. Numa linguagem direta eu diria que o amor perfeito é sempre imperfeito, porque gera desconfiança, medo da perda, diálogos impertinentes e riscos diversos. Se o amor fosse perfeito não aprenderíamos nada com ele, não nos reinventaríamos com ele. Amor é uma construção humana que só pode ser vivido dentro das imperfeiçoes de quem o criou. O mito do amor perfeito não sobrevive a realidade cotidiana dos amantes. Ele exige reinvenções constantes dos parceiros envolvidos. O sentimento que não passa por constante regeneração, facilmente se degenera.
– Por que tanta gente entrou pelo túnel da intolerância a ponto de pedir nova ditadura militar? O que passa na cabeça dessas pessoas?
– Tudo indica que o túnel da intolerância está ligado a outros túneis extremamente perigosos. Vejo a intolerância, a indiferença, a insensibilidade humana e a falta de empatia como sintomas de um mal-estar generalizado em que vivemos. A modernidade em que vivemos é caracterizada como aquela que acabou todas as certezas; a incerteza se tornou a grande certeza que as pessoas têm. Uma época que suspendeu todos os referenciais diluiu todos os padrões, abriu todas as possibilidades de ser e superficializou todas as relações. A intolerância demonstra a incapacidade de compreensão, de diálogo e de conhecimento sobre a condição humana. Quem pede a ditadura, pede o absurdo da história humana exatamente por desconhecer a história e ter perdido a capacidade de empatia com os outros. Na realidade, não vemos somente o pedido do retorno á ditadura e sim pedidos, desejos, lutas e defesas das pessoas em busca de um tempo que não viveram, mas que acham que pode ser a salvação desse presente que elas mesmas não entendem. Quando as pessoas deixam de olharem para frente deixam de acreditarem em utopias, a única coisa que elas fazem é buscarem segurança, apoio e padrões no passado. É assim que as utopias são substituídas pelas “retrotopia”, nas palavras de Zigmunt Bauman. Se nas utopias as pessoas eram movidas por sonhos, esperanças e ideais de viver um futuro melhor, nas “retrotopias” as pessoas perdem o sonho e a fé no futuro e voltam a olhar e buscar o que já foi vivido como modelo de vida social. Ou seja: por falta de conhecimentos, por cegueira cognitiva, por inseguranças e medos do futuro, as pessoas vivem o presente do passado e não o futuro como guia. Confesso que não sei o que se passa na cabeça dessas pessoas, mas imagino que a cabeça delas deveria passar por muitas coisas, deveria se abrir ao mundo e as dores dos outros. Desconfio profundamente dessas mentes- que não tem nenhum conhecimento histórico e nenhuma sensibilidade humana -  mentes que desejam fazer de um passado desumano em um presente seguro. Desconfio desses cegos que acreditam enxergar com clareza.
– Do que você tem medo neste contexto?
– O medo é destruidor de sonhos, de conquistas; destrói a fé, o amor e projetos de construção do futuro. Ele afasta as pessoas uns das outras e delas mesmas. Nesse contexto ao qual você se refere, eu tenho medo do medo das pessoas. E que esse medo faça a gente se afastar mais e mais uns dos outros. Tenho medo do medo que justifica aquilo que poderia ter sido feito e não foi. Tenho medo do medo que faz as pessoas não confiarem nelas mesmas. Tenho medo que o medo nunca acabe, porque a indústria do medo e da insegurança não acaba o que elas prometem. Tenho medo que o medo acabe a nossa vida e as relações sociais.
– A simplicidade é mesmo o caminho mais difícil?
Acho que não é preciso explicar muito nem dar muitos exemplos para dizer que: é muito fácil ser difícil. Por outro lado, o mais difícil é ser fácil.
– O que você viu e aprendeu da vida, considerando o antes e o depois da psicanálise?
– Não sei se sei responder a essa pergunta, porque não é fácil ter clareza do que acontece com a gente. O que posso dizer é: a psicanalise está presente em tudo que faço, não como um saber, mas como uma escuta do silêncio das coisas, não como um saber, mas como uma busca. Claro que as noções sobre o inconsciente, pulsões, transferência, a teoria do gozo e outras noções psicanalíticas tem me ajudado a ver com mais profundidade a realidade social e as pessoas, tem me ajudado nessa busca pelo saber que ainda não sei.
– O que você gostaria de deixar de legado, ou ensinamento, depois de tudo?
– Nunca havia pensado nisto (risos). Talvez meu legado seja minha vida. Falei anteriormente que sou fascinado pelas palavras. Só tenho a palavra para falar de mim. Só tenho a palavra para falar e me relacionar com os outros. Só tenho a palavra para ir além de mim. As palavras podem viver mais do que aquele que fala. Então, se eu pudesse deixar alguma coisa como legado, gostaria de deixar uma palavra que pudesse ajudar aqueles que estão em busca de si mesmos. Sei que isso é impossível, mas sei também que minha vida foi, toda ela, feita de impossibilidades. Mas eu nunca desistir. Por isso que estou em busca de uma palavra que me leve para além de mim mesmo, uma palavra maior do que minha boca. Busco uma palavra que ajudasse alguém a mergulhar em seu silêncio e desse silêncio ela pudesse fazer falar aquilo que não tem nome.
– Conte-nos um segredo da vida.
– Acho que alguns segredos eu já confessei nesta entrevista. Os outros, bom, os outros eu não posso contar, porque senão eu ficarei tão transparente para mim mesmo que eu não me enxergarei mais, minha vida ficaria tão leve que não deixaria passos na areia da praia (risos). Acho que toda vida humana guarda segredos e deve guardar. Ninguém acha interessante uma esfinge sem segredos (risos). De mim, eu poderia dizer o que Clarice Lispector disse certa vez: “Minha vida é feita de muitas histórias e nem todas posso contar”.





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