COM EDUCAÇÃO E AFETO
Quem fala de Fátima Araújo lembra logo de educação e da UERN. Não há
como dissociá-la. Mas conhecendo um pouco mais sobre sua história é possível
perceber que essa ligação é muito mais profunda do que pensamos, é praticamente
orgânica.
Entramos no
apartamento de Fátima Araújo, no bairro Nova Betânia, em Mossoró, perto das
19h. Cheguei de Natal e segui direito para este encontro marcado naquela manhã.
Na habitação do 12º andar a visão da cidade é um espetáculo que combina
perfeitamente com a arrumação do lugar. Uma casinha de boneca para fazer uma
analogia antiga. Tudo em seu devido lugar, inclusive os espaços de trabalho.
Na pequena
varanda arrumada com móveis sob medida, dois computadores quentes. O dia tinha
sido de muita atividade e se estenderia, apesar de ser uma quarta-feira,
véspera de feriado de semana santa. Ali, Fátima e a colega de departamento,
Maria Auxiliadora, trabalhavam na documentação para o reconhecimento do curso
de Educação da UERN. No rosto das duas um sorriso de orelha a orelha denunciava
estarem fazendo a coisa que mais gostam na vida.
Paulo Freire
em suas constatações sobre o homem e os processos educativos disse certa vez
que se movia como educador porque, primeiro, se movia como gente. Para ele, ser
educador é ser consciente de seu papel no mundo como indivíduo consciente e
transformador. O amor pelo trabalho define o comportamento do homem e seu
compromisso consigo e com a sociedade. É por isso que Rubens Alves dizia que toda
experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva.
Digo isso
porque talvez não consiga definir a professora Fátima Araújo sem pensar neste
contexto. Sua trajetória não se confunde com a educação que exerce dentro e
fora das instituições de ensino porque, grosso modo, é a mesma coisa. Assim
como as freiras se dedicam à igreja, Fátima entregou sua vida à educação e à
missão de mudar o mundo. A única diferente, novamente parafraseando Freire, é
que ela ama as pessoas e o mundo, mas briga para que a justiça social se
implante antes da caridade.
Foi a
professora Francisca Glaudionora quem me sugeriu procurar Fátima quando pensei
em realizar meu mestrado em 2016. Apesar de já conhecê-la, nosso encontrou no
auditório da Reitoria da UERN foi muito formal, ao menos de minha parte, porque
ela mesma parecia muito a vontade.
Quando cumpri as exigências e entrei no
programa, esperei ser direcionado a escrever meus pensamentos. Foi então que
Fátima começou a me ensinar a ser pesquisador me dando autonomia para pensar e
agir por meus próprios pensamentos. Na teoria isso é bonito, mas na prática
assusta um pouco.
Seu trabalho
foi exato como Paulo Freire disso: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas
criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.” E
mesmo nos momentos em que eu estive perdido, fui mal influenciado e desmotivado
dentro do curso, foi ela quem segurou minha mão e mandou que eu me aprumasse. É
assim que a educação transforma, mas é preciso ter a sensibilidade para
perceber e mediar a atitude certa no momento exato.
Francisca
Fátima Araújo Oliveira nasceu em Mossoró no dia 4 de outubro de 1958. Foi pega
por uma parteira na casa de seus pais, então localizada no bairro Alto da
Conceição. Seu Marcolino Antônio de Oliveira trabalhava na indústria do óleo de
caroço de algodão e dona Maria Araújo Oliveira cuidava da casa e dos outros
quatro irmãos da caçula recém-nascida: Maria José, Antônia Brígida (falecida),
Maria do Socorro e José Fabiano.
– Minha mãe
votou nas eleições gerais no dia 3 e na madrugada do dia 4 eu nasci – lembra
Fátima em referência ao comportamento da mãe, seu espelho de luta.
É muito
interessante a história de dona Maria Araújo. Apesar de não ter tido condições
de estudar, sempre manteve controle de sua vida, atitude muito à frente de seu
tempo. Natural de Serra Caiada, casou-se com seu Marcolino em Campo Grande.
Vendo que as condições estavam difíceis na pequena cidade, o chamou para se
mudarem para Mossoró. Ele resistiu. Ela então não contou conversa. Arrumou as
coisas, ajeitou os meninos e rumou para a casa dos irmãos. Por aqui conseguiu
emprego para o marido e foi buscá-lo em seguida.
Ser professora
sempre foi o desejo de Fátima, por isso fez igual à mãe: traçou um plano e
seguiu. Lembra que quando ganhou o primeiro material escolar saiu mostrando a
todo mundo da rua. Além do Grupo Escolar Cônego Estevam Dantas, onde começou a
estudar, Fátima também frequentava o Ambulatório José Pereira Lima para
acompanhar a tia Das Dores Araújo Góis, que se tornou diretora por ser
“professora formada”, como diziam à época.
Fez o exame de
admissão para o primeiro grau no Jerônimo Rosado quando ainda funcionava no
anexo do bairro Alto da Conceição. Começou o segundo grau no Eliseu Viana,
cursando magistério, mas concluiu contabilidade na Escola Estadual Justiniano
Serpa, em Fortaleza. Em 1977, terminou o ensino médio e em
1978 prestou vestibular para História na Universidade Regional do Rio Grande do
Norte (URRN), atual UERN, concluindo em dezembro de 1981.
– Quando
passei no vestibular tinha pontos para ir para Direito, mas escolhi História
porque queria ser professora. O povo ficava questionando “por que educação?” Eu
tinha muita raiva! (risos).
Em agosto de
1982, foi contratada como professora da URRN no campus de Assú, continuando uma
paixão pela instituição desde quando começara a graduação. No mesmo período,
passou a dar aulas no Científico e Ensino Fundamental do Diocesano.
Interessante é
que paralelo ao trabalho como educadora, Fátima trabalhava no comércio para
complementar a renda. Em 77, trabalhou na Ferragens, Imóveis
e Materiais de Construção LTDA, na Coronel Gurgel com a Felipe Camarão. De lá,
foi trabalhar em Pedro Aquino de Morais, na esquina da antiga Associação
Cultural e Esportiva Universitária (Aceu), onde ficou até 1984.
Neste ínterim, porém, a URRN assinou sua carteira em 1983 e em 1984 ela
passou no concurso para professora do Estado, com carga horária de 20 horas
semanais. Dava aulas de história no atual colégio Padre Sátiro e atuava como
professora polivalente no Dom Jaime Câmara, no bairro Pintos.
Em 1985 fez novo concurso para o Estado, conquistando 40 horas, mas
pediu exoneração de um dos vínculos em 1987 quando a URRN virou UERN. Em 1994,
saiu do outro vínculo quando a universidade lhe concedeu dedicação exclusiva.
Quando assumiu carga horária somente na UERN, Fátima já tinha acumulado
12 anos de experiência em todos os níveis da educação: Científico, Ensino
Fundamental, Supletivo, anos iniciais e ensino superior. Deu aula de história,
Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e Moral e Cívica, e nos últimos
20 anos tem se dedicado ao ensino e a pesquisa em Educação.
Especialista
em Geografia pela URRN, fez mestrado (UFPE, 1999-2001) e doutorado (PUC/SP
2006-2010) em Educação, com foco em política educacional, o que a tornou um
quadro importante para o desenvolvimento da UERN.
– “Eu amo tanto a UERN que fico pensando quem vai assumir as inúmeras
coisas que eu assumo (risos). Uma coisa que me deixa muito feliz é que, até
hoje, todas as tarefas que assumi na UERN eu cumpri”.
Chegou à universidade aos 19 anos como aluna e, mesmo tendo atuado em
outros espaços, tornou-se professora e está lá desde então. Foi secretária da
Associação de Docentes (ADUERN) em 1989, coordenadora da Comissão Permanente do
Vestibular (Comperv) entre 1993 e 1996, assessora de Avaliação Institucional de
2013 a2017 e pró-reitora adjunta de Ensino por dois mandatos: 1994 a 1995 e
2013 a 2017.
Isso sem contar as muitas comissões
que integrou, incluindo a transição do Instituto de Ciências Humanas (ICH) para
a atual Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC) em 1993. Também
atravessou diversas eleições para reitor neste período: Laplace Coelho, Walter
Fonseca, Padre Sátiro, Antônio Capistrano, Gonzaga Chimbinho, Nevinha Gurgel,
Milton Marques e Pedro Fernandes, a maioria com mais de um mandato.
Em 2017, antes de deixar o cargo de
pró-reitora adjunta, trabalhou muito, junto à pró-reitora Inessa Linhares e
demais comissões envolvidas, no processo de reconhecimento de todos os cursos e
no recadastramento da UERN.
No ano seguinte, solicitou
aposentadoria, mas precisou adiar novamente o direito que adquiriu desde 2012,
depois de 30 anos de trabalho. Por ser a professora mais antiga em exercício da
Faculdade de Educação, assumiu a direção para realizar as eleições
departamentais.
Neste percurso de muito trabalho e luta, mediou o trabalho, a vida
particular e a relação com a família sem perder o direito ao descanso.
Aproveitou suas funções e a educação para conhecer o País e o mundo. Como
avaliadora Ad Hoc do Ministério da Educação (MEC) visitou praticamente todos os
estados do Nordeste. Na companhia de boas amizades desbravou Cuba, Argentina,
Uruguai, Paraguai, Portugal, Espanha e França e tem muitos planos de viagens na
gaveta ainda.
Desde novembro do ano passado, deu entrada novamente na aposentadoria e
agora está certa de que vai parar. Quer dizer, vai parar de dar aula na
graduação da UERN, porque continuará no Programa de Pós-Graduação em Educação
como colaboradora, tendo, inclusive, aberto vaga para mais dois orientandos.
A força de Fátima Araújo está nesta dedicação ao que faz. Atua por
prazer e amor, muitas vezes colocando as tarefas à frente de sua vida e saúde.
Não conto as vezes que a flagrei no final da tarde trabalhando na Pró-reitoria
sem sequer ter almoçado. Mas sempre foi escolha dela que respondia com um
sorriso de quem tinha se alimentado daquilo que gosta fazer como profissional.
Sua casa, refúgio particular, tem espaço para receber orientandos que
precisam de apoio em seus projetos. Ela arregaça as mangas e não deixa que os
limites humanos atrapalhem o conhecimento. Mas tudo no tempo do aprendizado e
conforme a capacidade autônoma do próprio envolvido. Sua atuação mediadora não
impõe nada a não ser a necessidade do próprio aluno de compreender os caminhos
que precisa seguir.
Sua elegância não está apenas no vestir ou no arrumado de sua casa, está
no trato, no cuidado e no preciosismo da escrita, das revisões demoradas e das
explicações extensas sobre sua trajetória. Da escola de Frankfurt, adepta à
Teoria Crítica, observa o mundo com olhar atento e ações práticas e assim conduz
seu jeito de mediar o ensino.
Entender o seu pensamento sobre a educação me pareceu preponderante em
nosso encontro, tendo em vista não conseguir dissociá-la, hora nenhuma, desta
função, mesmo quando ainda era jovem demais para compreender o que se tornou. Foi
por aí que começamos a conversar, notadamente a partir das dúvidas mais comuns
que todos nós, admiradores da educação carregamos.
– Por que a educação continua sendo um desafio tão grande?
– A educação é libertadora e, às vezes, as condições para a educação são
muito difíceis justamente por isso. O primeiro plano de educação que se pensou
foi na Constituição de 1934, mas o primeiro que se concretizou por força de lei
foi em 2001. Veja bem. As coisas para a educação são muito lentas, muito
difíceis. A primeira LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) do Brasil
passou 13 anos em tramitação. foi dado entrada em 1948 e só foi aprovada em
1961. Por aí você vê como são difíceis as coisas para a educação.
– Muitos jovens professores começam
sua missão desmotivados. Por que isso é ainda tão comum?
– A desmotivação é devido às
condições. A desvalorização da profissão, a falta de apoio, as dificuldades. Então,
tudo isso contribui para essa desmotivação, de muitos jovens nem quererem ser
professores.
– É comum ouvir pessoas dizerem que
tentaram educação porque era mais fácil entrar na faculdade. Como mudar esse
pensamento?
– Isso se muda com educação. Se
começarmos a dar educação de qualidade desde a educação infantil, com certeza
isso vai mudar. As pessoas vão entender o valor da educação, tanto na escola
quanto nas definições das políticas educacionais.
– Há no Brasil, hoje, um clima de
negação e oposição ao pensamento de Paulo Freire. Qual sua visão sobre esse
comportamento?
– É muito complicado uma pessoa se
colocar oficialmente contrária a uma educação que emancipa, que liberta. Então
é muito complicado. Eu acho que é aquilo que Adorno diz: envidar todos os
esforços no sentido de promover essa educação emancipadora, para a autonomia, a
educação para a democracia.
– Na sala de aula se ensina ou se
educa?
– O processo de ensino-aprendizagem é
recíproco. Quando você ensina você educa e quando você educa você ensina. Mas é
preciso ter acompanhamento, pois é difícil que a escola sozinha faça isso.
– Você acredita nesta coisa de
vocação ou o compromisso e a paixão pelo trabalho são suficientes para se
realizar um bom trabalho e promover transformações?
– Acho que tudo isso. Você só tem
compromisso, a responsabilidade, se fizer o que você gosta. Se não fizer o que
gosta, não vai entrar de cara, como a gente diz. Não vai assumir aquilo como se
fosse uma meta de vida, de trabalho de responsabilidade, de compromisso se não
se envolveu com o seu trabalho. Eu acredito no trabalho em que você se envolve.
Tudo que vou fazer eu tenho de me apaixonar.
– O que mais lhe orgulha na tarefa de
ser Professora?
– É ver meus alunos e ex-alunos sendo
bons profissionais, pessoas comprometidas com a emancipação, por uma educação
de qualidade, trabalhando por uma sociedade melhor, mais emancipada. Então,
quando encontro meus ex-alunos e vejo que eles estão fazendo esse trabalho, eu
me sinto realizada.
– O que o tempo em sala de aula e em
discussões sobre Educação lhe mostrou sobre esta tarefa?
– Que as pessoas mudaram muito e isso
foi graças à força da educação. O preconceito, o predomínio do machismo, tudo
isso tem mudado muito e atribuo isso à força da educação.
– Considerando tudo o que viveu
até aqui, o que você viu da vida?
– Eu vi que a vida mudou. No dia em
que minha mãe comprou meu primeiro material escolar: um caderno de desenho, uma
cartilha bem bonita e uma coleção de lápis de cor com seis lápis, eu fiquei de
uma ponta a outra da rua mostrando a todo mundo e aquilo era uma coisa que
quase ninguém tinha, de uma ponta a outra da rua. Hoje, você vê que as pessoas
têm acesso à educação, a melhores condições de se educar, de estudar, de
melhorar e eu acho que isso foi uma coisa muito boa na vida. Foi essa mudança
na vida das pessoas. As coisas eram muito difíceis há 50 anos.
– Que legado quer deixar para as
novas e futuras gerações?
– O compromisso com a educação. O
respeito pelo outro, a vontade de ajudar as pessoas, de tonar a vida das
pessoas melhor. Eu pedi a Deus para só me dar conhecimento se fosse para ajuda
a melhorar a vida das pessoas, sem isso eu não queria ter conhecimento. Porque
eu acho que o conhecimento é humilde. Quando ele se torna arrogante e pedante
ele é ignorância. Conhecimento, para mim, é humildade, é respeito pelo outro.
Quando você detém conhecimento para ser arrogante e tratar a pessoa com
pedantismo você se torna ignorante. O conhecimento é humilde.
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