A MULHER QUE CORRE COM LOBOS




Dona de um sorriso contagiante, Cleudene Aragão aprendeu cedo o seu lugar no mundo. Uma das principais pesquisadoras do Espanhol no Nordeste é também uma escritora de grande relevância e espelho para a formação de professores e educadores no Ceará. Acima disso, uma mulher que carrega uma força natural capaz de inspirar qualquer pessoa.

Percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para a devoção fazem parte de características comuns em lobos e mulheres saudáveis, como disse a escritora e psicanalista Clarissa Pinkola Estés. Mas correr com lobos é um desafio constante na vida da mulher.
C. S. Lewis escreveu que “cada vez que você faz uma opção está transformando sua essência em alguma coisa um pouco diferente do que era antes”. Com Cleudene Aragão, as decisões definem bem o seu tablado, mas ela segue atravessando os prados e encostas, apesar das escolhas que tem feito na vida. Correndo e levando consigo outras mulheres que veem nela a possibilidade de correr também.
A vontade, disse Nietzsche, é cega e insaciável, uma força que estaria para além dos nossos sentidos. O físico Leonard Mlodinow defende que o inconsciente define nossa visão de mundo e guia a nossa vida. De maneira mais simplista, Jung completa dizendo que quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta. Quando a percepção é maior que a condição, é possível que despertemos nosso lado primitivo e desse momento em diante, sigamos um ritmo próprio. Algo que beira o admirável.
Pinkola vai além e defende que o espectro da mulher selvagem ainda espreita aquelas que conseguem conviver com seus impulsos originários. “Não importa onde estejamos, a sombra que corre atrás de nós tem decididamente quatro patas”, disse.
Não fosse a sombra da loba que persiste em esgueirar-se atrás da luz de Cleudene, possivelmente ela não teria concluído projetos importantes em sua vida e tivesse entrado no túnel dos que se resignam e têm medo.
Trabalhando desde cedo, sempre teve grande participação na condução da casa em que morava com os pais e irmãos. No período em que seu pai adoeceu, decorrência de uma vida desregrada e de trabalho árduo como caminhoneiro, assumiu a tarefa de ajudar a cuidar de sua saúde. Em 2006, quando precisou voltar a Barcelona (Espanha) para defender seu doutorado, o levava a cada 15 dias ao hospital para tratar do estômago.
Defendeu a tese no dia 20 de dezembro, mesmo dia em que soube da morte de seu avô paterno, Edmundo Aragão. Ainda ligou para a mãe, dona Cleide, e perguntou pelo pai, mas não falou com ele que estava muito abatido.
No dia 21, recebeu uma ligação da irmã e descobriu que ele estava com câncer, algo que já suspeitavam. Notícia triste, mas nada comparado à do dia 22, quando lhe avisaram de seu falecimento.
– Meu pai faleceu em casa nos braços de minha mãe.
Distante mais de seis mil quilômetros, Cleudene procurava chão. A dor da perda era do tamanho do remorso de não estar lá para segurar a mão dele, de se despedir. Só conseguiu chegar ao Brasil praticamente dois dias mais tarde, depois do sepultamento. Passou a carregar uma dúvida pesada nas costas. Talvez não devesse ter ido para a Espanha. Deveria ter percebido o que estava por vir, ter tido mais clarividência, uma série de questões que só muito depois percebeu que fogem à condição humana.
– Cheguei, só tinha o vazio. Não consegui me despedir. O ano seguinte foi de reaprender a viver e assumir todas as responsabilidades da casa, lidando ao mesmo tempo com a dor. O principal aprendizado é que qualquer dor é menor do que essa e que devemos demonstrar o nosso amor todos os dias.
Como lembrou Rachel de Queiroz, cada coisa tem sua hora e cada hora o seu cuidado. 2007 foi um rito de passagem, uma abstração, um tempo que se foi sem ser visto, mas a força primária de seus músculos levantaram Cleudene aos poucos. Cada mulher, segundo Pinkola, recebe uma célula refulgente que contém todos os instintos e conhecimentos necessários para a vida. “Ela é tudo o que for instintivo, tanto do mundo visível quanto do oculto – ela é a base”.
E não poderia ser diferente, pois as condições exigiam. Porém, neste meio termo, apesar de tudo que conquistou profissional e academicamente, o bom humor ajudou a curar o que para Cleudene foi sua maior ferida. Seu Armando era um comediante que carreava qualquer dificuldade para o riso.
Conheci Cleudene neste tempo de reconstrução, por volta de 2009, um dos grandes presentes que ganhei de Regiane, minha esposa. Também professora de Espanhol, tem na conterrânea um apoio constante e generoso na condução de suas pesquisas acadêmicas.
Quando a encontro as energias são sempre favoráveis. Ela sempre me faz lembrar uma frase de Jung que diz: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Assim é Cleudene de Oliveira Aragão, uma mulher que já corria com lobos, mas que o tempo a tornou em líder de várias alcateias.
Nascida em Fortaleza no dia 11 de dezembro de 1972, dedica sua vida aos estudos. Filha de seu Armando (comerciante) e dona Cleide (costureira) – já mencionados –, tem dois irmãos: Simão Pedro e Arbene, ambos petroleiros.
Estudou o fundamental no Colégio Pituchinha, o ginásio no Educandário Machado de Assis e o Ensino Médio na Escola Técnica Federal do Ceará, onde se formou técnica em Turismo. Em 1990, graduou-se em Letras Português/Espanhol pela UECE. Estudou inglês e francês na ETFECE (equivalente hoje ao IFCE) e espanhol na Casa de Cultura Hispânica da Universidade Federal do Ceará (UFC).
– Ao terminar Turismo na ETFCE fiz teste de nível e passei a estudar as três línguas nas Casas de Cultura. Mas a paixão maior foi o Espanhol.
Começou a trabalhar cedo. Aos 16, já dava classes particulares de Espanhol. Depois, trabalhou no Colégio Batista até 1998, como professora. Em março de 1995, porém, fez concurso para professora de Espanhol da UECE, onde trabalha desde então, agora com dedicação exclusiva.
– Colei grau em janeiro de 1995 e o concurso foi em março. Fui admitida em maio de 95. Ao todo são quase 30 anos de UECE.
Mestra em Letras (UFC), Doutora em Filología Hispánica, pela Universitat de Barcelona, e pós-doutora pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), juntou à sua trajetória coisas que lhe davam muito prazer: Espanhol e viajar.
A pós-graduação permitiu a ela construir uma relação de vivência com Barcelona, aonde vai com certa frequência, e, mais recentemente, com Belo Horizonte, onde mantém relação com o Grupo de Pesquisa do Letramento literário no Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale). 
– Viver quatro anos em Barcelona foi incrível. Um banho de cultura e de literatura, mas principalmente de experiências vitais, sobretudo a descoberta de que eu tinha deixado de ser uma menininha e me tornado uma mulher. Minas me mostrou principalmente que posso forjar uma nova maneira de viver, para buscar chegar a uma vida plena, pautada não somente na razão ou no intelecto.
O amor pela literatura segue junto à paixão pela língua estrangeira. É uma coisa que, segundo ela, vem de outra existência, mas teve apoio de uma referência feminina.
– Devo o cultivo desse amor à minha mãe. Ela trabalhava como costureira e me levava sempre que ia ao centro de Fortaleza para comprar aviamentos. De cada uma dessas viagens eu voltava com uma revista em quadrinhos ou um livrinho.
De leitora, tornou-se escritora. Desde 2000, já publicou seis livros, sendo o primeiro “Xosé Neira Vilas e Rachel de Queiroz, fabuladores artífices” (2000), escrito em galego. Neste trabalho importantíssimo para a literatura galega e brasileira, ela faz a relação proximal das produções literárias de Xosé Neira Vilas (Espanha, 1928 – 2015) e Rachel de Queiroz (Brasil, 1910 – 2003).
O texto foi revisado e reeditado em português com o título “Rachel de Queiroz e Xosé Neira Vilas: Vidas feitas de Terras e Palavras”, em 2012, ganhando o Prêmio Osmundo Pontes de Ensaio. Enche os olhos a entrevista que ela fez com Rachel, trazendo informações importantes de sua gênese criativa e percepção de mundo.
Participou ainda de uma coletânea de contos com seis autoras, chamado “Quantas de Nós” (2011), vencedor do prêmio Moreira Campos 2010; escreveu o livro “Crônicas sobre o bairro José Walter” (2016), para a Coleção Pajeú; O conto “Coração Selvagem”, para o livro “Para Belchior, com amor” (2016) e a coletânea de contos com cinco outras autoras, intitulado de “Rastros de Mentiras e Segredos” (2017).
Na Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, foi coordenadora de Políticas do Livro e de Acervos de 2003 a 2005.  Também foi curadora e coordenadora das 6ª, 7ª e 12ª Bienais Internacionais do Livro do Ceará (2004, 2006 e 2017) e também idealizadora e coordenadora da Festa do Livro e da Rosa do Ceará (23 de abril) que já teve nove edições.
Sua superação e seu currículo não mudaram seu sorriso e sua cara. Cleudene tem uma vida simples e comportamento de muitos amigos que lhe cercam o tempo inteiro, seja em Fortaleza, Minas ou na Espanha. Vivendo em um apartamento modesto no bairro Montese, na companhia de Penélope, uma gatinha cavilosa, segue acompanhando a mãe, vizinha de frente, em quase tudo que faz.
Ama Cervantes, tem paixão por Mia Couto e trata Eduardo Galeano como “crush”, mas o livro que lhe inspira, desde 2002, é o de Clarissa Pinkola Estés.
– Mulheres que Correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem, me reconecta com a minha mulher subterrânea.
Por subterrânea, ela quer dizer primitiva, por primitiva quero dizer autêntica. Forte, por assim dizer. Pronta para a luta e para apoiar os que a procuram dentro e fora da academia. São inúmeros os trabalhos de graduação e pós orientados por ela. Inúmeros os meninos e meninas que se tornam professores a usando como espelho.
Além disso, tem ainda tempo para serviços sociais. Em 2013, criou o projeto UECE Solidária, que arrecada alimentos durante a Semana Universitária para apoio a instituições que acolhem pessoas em vulnerabilidade social. Participa também de um reforço solidário em um abrigo de adolescentes e de um sopão solidário para pessoas em situação de rua no centro de Fortaleza.
Para mim, que dela espero apenas seu aspecto de suavidade, seu sorriso me basta e, claro, suas palavras de carinho, afinal também sou caviloso – eu e Regiane somos.
Cleudene não é intransponível, mas como disse Shonda Rhimes, “é o esforço que faz as coisas acontecerem. É o esforço que cria mudança”. E neste esforço se concentra uma série de questões sólidas que não apenas exigem seletividade em certas escolhas, como também assusta aos que têm medo das que possuem garras afiadas.
Apaixonada (também) por Belchior – por Wolverine idem, afinal ela é mulher suficiente para este tipo de amor mitológico – sabe que “viver é melhor que sonhar” e assim vive sorrindo, mas com os pés no chão. E essa forma de viver e de ver o mundo é o que desperta em nós a vontade de entender a realidade a partir de seus olhos. Foi por isso que a convidei como última mulher a ser biografada, e entrevistada, neste mês de março. O que ela tem a dizer sobre certos assuntos interessa a mim e ao mundo e neste caminho começamos nossa conversa.


– Existe amor em Fortaleza, ou como diz Crioulo ela também seria um buquê – Buquê são flores mortas?
            – Existe sim amor em Fortaleza, mas é bem difícil de encontrá-lo de dentro do carro travado e com película escura nos vidros. Fortaleza não é uma cidade muito amigável para seus habitantes. Circular pela cidade é um tipo de resistência. Sem mencionar o Mar, não saberia dizer qual meu lugar preferido da cidade. Meu lugar preferido de Fortaleza são as pessoas que amo e o Mar, sempre o Mar.
            – Por que um Estado, que é referência na Educação como o Ceará, não consegue reduzir os índices de violência?
            – Isso é tão difícil de responder (pausa), mas tendo em vista que a educação que está triunfando é a do ensino fundamental dos últimos 15 anos, ainda leva algum tempo para que essa geração tome as rédeas da sociedade. A violência de hoje, portanto, vem como decorrência da negligência ancestral com a educação e a cultura. Há bairros de Fortaleza que não têm sequer uma pracinha, muito menos centro cultural ou escolas de qualidade.
            – A Educação não é suficiente para pacificar o homem?
            – A educação talvez sim, em parte. Apenas o ensino, com certeza não. No entanto, a educação em um sentido amplo, holístico, precisa vir acompanhada das condições mínimas de sobrevivência, um teto, comida farta, o direito de andar na própria rua, da arte, da cultura, de um futuro. Creio que a educação prepara o ser humano para se reconhecer merecedor desses direitos e lutar por eles, mas sozinha sua luta é árdua e demorada.
            – Por falar em Educação e considerando seu trabalho, qual será o futuro do ensino de Espanhol no Brasil diante das últimas decisões do Ministério da Educação de torná-lo optativo nos currículos escolares?
            – O projeto é de manutenção apenas do inglês. Os esboços dos novos documentos oficiais trazem claramente Língua Inglesa quando, em prol da diversidade linguística, poderiam trazer Língua Estrangeira e deixar livre a escolha. O futuro se apresenta pouco animador, mas a resistência vem garantindo que alguns estados decidam, por lei própria, ou por acordos com as secretarias de Educação, a manutenção do espanhol em suas redes de ensino.
            – Negar o espanhol é também negar nossas origens latino-americanas?
            – Com certeza! Na minha opinião, sem qualquer demérito ou ojeriza de minha parte à língua inglesa, esse é um projeto de desmobilização da frágil unidade latino-americana que vinha sendo construída com o Mercosul e um claro anúncio de subserviência aos Estados Unidos. Reconheço a importância da língua inglesa, mas de todas as demais também.
            – Como você enxerga o novo contexto político-educacional do Brasil depois deste novo governo?
            – Como um vale de trevas. Tento manter a esperança em âmbito individual e familiar, mas o panorama nacional tem me dado as maiores tristezas dos últimos tempos. Vejo (na educação e nas demais pastas) pessoas despreparadas, fanáticas de suas próprias teorias mirabolantes sem qualquer base científica, questionando pessoas que dedicaram suas vidas a pesquisas e inovações educacionais. Esses seres trevosos estão encarregados de destruir o futuro de nossas crianças e jovens, e isso para mim, é desolador.
            – E a mulher, seguirá conquistando espaço ou será silenciada como foi Marielle Franco?
            – Toda conquista ou manutenção de direitos vai ser pela luta. Marielle foi silenciada, mas grita mais do que nunca. Ela é exemplo para muitas meninas da nova geração que não admitirão mais o silenciamento, mas que infelizmente continuam com suas vidas em risco. A conquista do espaço pelas mulheres, a pesar do contexto adverso, é irreversível, não temos mais como (nem queremos) parar nem voltar atrás.
            – A educação escolar poderia salvar mais meninas, ou a pressão sobre a escola é maior do que ela pode suportar atualmente?
            – Se a onda obscurantista “pegar” vamos ser proibidas até de manifestar nossas ideias, mas vamos lutar para que isso não aconteça. Creio que a principal função da educação escolar é formar leitores e leitoras críticas de textos, do mundo e da vida. Esses leitores críticos saberão lidar e vencer temas como machismo, racismo, homofobia, opressão ao pobre e demais preconceitos, mas é um trabalho que levará muito tempo.
– Já tentaram calar sua voz? Como você reage ao autoritarismo patriarcal?
            – Não. Nasci durante a ditadura militar, mas ela acabou quando eu ainda era uma menina. Branca, cisgênero, hétero, em uma família com um pai machista (como quase todos naquela época), mas com uma mãe feminista (nem sabia que era, mas é) que nos orientava em tudo (a mim, minha irmã e meu irmão) e que dizia coisas como “seu marido é seu emprego”, “tenha seu próprio teto”, para mim foi natural ocupar meu lugar no mundo, mesmo sendo pobre e lutando muito para isso. O autoritarismo patriarcal se revela todos os dias para as mulheres brasileiras, na falta de oportunidades, na falta de visibilidade, na tripla jornada de trabalho, mas também no fato de que muitos homens ainda acham que a mulher independente “não é pra casar” ou que a mulher é sua propriedade, portanto pode dispor livremente até da sua existência.
            – Quem é você no mundo e que legado gostaria de deixar para seus leitores?
            – A gente passa a vida toda tentando responder essa pergunta. Sou uma mulher destemida na vida profissional (não tenho medo de nada nesse campo) e tímida na vida sentimental (não sei se ainda creio no amor). Ávida por justiça, que acredita em Deus e outras coisas invisíveis, que tenta contribuir para fazer do mundo um lugar um pouquinho melhor. Como escritora, ainda estou em construção, mas gostaria de deixar textos que deixassem alguma marca nos leitores. Despertar um sorriso, uma dúvida, um projeto, uma angústia, um sonho, uma raiva, uma lágrima, uma saudade. Desejaria tirar os leitores do lugar, fazê-los desejar viajar e, sobretudo, crerem que, com sonho e luta, podem chegar aonde quiserem chegar.

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