ALMA LIVRE E LIBERTINA EM CORPO-PRISÃO


Para além das Ciências Sociais, a professora Patrícia Lorena Raposo tornou-se uma referência literária na cidade onde mora, mesmo sem ter despertado ainda a grande escritora que esconde dentro de si.

            Quem nós somos na caixa do mundo? Somos mais felizes se o universo conspira a nosso favor ou mais forte se aprendemos a superar grandes desafios? Perguntas impossíveis de respostas exatas, embora exista uma garimpagem cada vez mais frequente ao entorno delas.
            Para a cientista social Patrícia Raposo, poder ser, projetar-se para fora de si, se ver como se pensa que é, como queria ser e sonha ser, é um grande desafio. Ela, que se considera uma alma livre e libertina em corpo-prisão quando escapa das margens que a comprimem, diz ter enorme dificuldade de seguir padrões. Isso lhe tolhe, limita e encaixa. Na verdade, e ela sabe disso, esta é, possivelmente, a sensação mais angustiante das pessoas atualmente, sobretudo na pós-modernidade líquida e virtual.
Apesar da resistência do sistema, ser mulher ainda mais complexo. Como disse a filósofa Márcia Tiburi, a complexidade do esforço de alguém que precisa usar muita força para suas ações e, ao mesmo tempo, ser frágil, ou melhor, parecer frágil, intensifica o paradoxo que é ser mulher.
Quando não prestamos atenção nas definições e imposições culturais, chamamos de vitimismo uma luta diária, pois para quem não a sofre é apenas característica da linguagem e da rotina. Por exemplo, segundo Tiburi, “Mulher” vem do latim mollior, que é superlativo de mollis. Mollis designa o que é mole, no sentido de coisa inconsistente e sem força.
Poderíamos considerar o pensamento de Bruce Lee para pensar mole como a água que se molda a qualquer recipiente e é elemento de força e energia. Mas sabemos que não foi este o propósito dessas definições. Entretanto, como diz Boris Cyrulnik, com fios de lã biológicos, emocionais, psicológicos e sociais, passamos nossas vidas nos tecendo.
Patrícia Raposo aprendeu a costurar-se no silêncio. Em 20 de abril de 2005, ainda de luto da morte do pai, deu a luz a Felipe Gabriel, seu único filho, sob o julgo do olhar alheio. Ser mãe solteira nunca havia passado por sua cabeça.
– Foi duro chegar sozinha à maternidade, em outra cidade, e as pessoas em volta perguntarem o tempo todo pelo pai da criança. Mais duro ainda foi sair com ele sem o registro de nascimento porque o pai não estava ali. Ele só foi registrado dez dias após o nascimento. Por mais que você esteja confortável na situação é muito desgastante ter de explicar o tempo todo sobre a sua vida e enfrentar os olhares atravessados, cheios de julgamento. Talvez hoje eu até desse risada, mas ali naquele contexto, foi dolorido.
É provável que este momento tenha mostrado a Patrícia outro lado de “ser mulher”, pois sua vida mudou desde então. Mudou sua forma de olhar o mundo, de olhar a vida e a si mesma.
– É bem verdade que nasci junto com ele, enquanto mãe, e também renasci enquanto mulher, ser humano. Mas esse renascimento foi lento e gradual.
Aos 31 anos, descobriu estar gravidez na mesma época em que soube que o pai estava com uma alteração na próstata que evoluiu para um quadro complicado, levando-o a morte. Ao mesmo tempo em que a saúde dele ia se fragilizando, dentro dela uma nova vida nascia. Um paradoxo da vida e seus mistérios.
– Foram sucessivas perdas: meu pai, emprego, companheiro. Ganho: apenas uma vida para cuidar, uma vida toda me olhando com olhinhos assustados e brilhantes. Ali era literalmente uma nova vida. Eu saí de meu posto de menina para ser mãe e a potência que isso carrega vai muito além da metáfora. Sempre fui responsável, mas ali naquele contexto isso não bastava. Eram muitas faltas, ausências. Como prover os cuidados a uma criança, desempregada, sem perspectivas, e ainda vivendo o luto?
Óbvio que isso lhe trouxe consequências duras. Aumento de peso, autoestima baixa, desmotivação.
– Era quase como uma culpa eu querer ter vaidade em um contexto tão adverso. Só vivia enquanto mãe de Felipe. Eu tinha de ser uma mãe notável, exemplar, não passível de erro. Entrei na onda de ser ‘pãe’, potencializei isso. Depois aprendi que eu só poderia ser mãe e me concentrei nessa tarefa, tentando fazê-la da melhor forma. Hoje em dia, refeita, em todos os sentidos que essa palavra possa carregar, vivo um amor cada vez mais incrível por ele e, agora, também por mim.
Patrícia Lorena Raposo nasceu no dia 21 de julho de 1973, às 22h de um sábado na Maternidade Claudina Pinto, em Apodi. Filha do funcionário público José Olavo Raposo (falecido) e da costureira Juraneide Pereira Raposo, tem apenas uma irmã, cuja função cumpre com excelência: Poliana Léa Raposo, professora.
Sua trajetória escolar começou cedo, antes dos cinco anos, passando pela escola particular Educandário Mundo da Criança e as estaduais: Professor Ferreira Pinto, Professor Gerson Lopes e Professor Antônio Dantas. Terminou o Ensino Médio aos 16 anos. Fez o Magistério, embora seu sonho fosse ser dentista.
Aos 19, prestou vestibular para Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), sem a menor ideia do que seria e o que faria com aquela atividade. Somente depois do 3º semestre, ao encontrar as professoras Fátima Araújo e Anadja Braz, se deu conta que, por acaso, havia escolhido o caminho certo. Desde então decidiu o que seria profissionalmente: professora, mesmo que esta função lhe exigisse tanto esforço e energia. Mas trabalho nunca assustou Patrícia.
Aos 13 anos, para manter um tratamento ortodôntico em Natal, pediu três cheques em branco ao pai e montou, em casa, uma venda de roupas. Ficou nesta função, além de outras atividades complementares, até 1996, quando terminou a faculdade.
Depois, trabalhou como atendente de loja de eletrodoméstico, teve uma rápida experiência no Banco do Brasil e como supervisora do Censo do IBGE. Em 2001, começou a dar aula em uma escola particular, onde atuou desde o ensino fundamental até o superior. Em 2003, aceitou fazer parte da gestão de uma escola do Estado. Em 2008, finda a experiência, retornou à escola particular. Em 2008, junto com a irmã, empreendeu o sonho de ter sua própria escola de educação infantil, projeto que durou cinco anos. Em 2009, foi aprovada em concurso do Estado para professora.
Hoje leciona na Escola Estadual Sebastião Gomes de Oliveira, no distrito de Melancias, distante 13 km de Apodi. É lá onde ela forma os novos cidadãos e cidadãs através de sua didática que mistura empoderamento e literatura.
Seu amor pelos livros começou cedo e de forma inusitada. Aprendeu a ler em um bar, nos rótulos de cerveja Antártica. É que seu pai levava ela e a irmã para onde ia, inclusive para os bares que gostava de frequentar. Ele bebia cerveja e elas guaraná e entre um rótulo e outro as ajudava a aprender a ler.
– Dali eu comecei a associar as letras, sons e contextos e aprendi a ler antes do período normal na escola. Na casa de minha avó tinha vários livros, pois minha tia era professora. Tinha uma cartilha que era especial, todos os dias eu lia as suas histórias. Nós não tínhamos livros em casa, além destes da casa de minha avó, tinham os livros da amiga Michelle, filha de Dodora. Lembro que devorava as coleções de livros dela. Depois disso, já na adolescência surge um Clube do Livro. Minha mãe nos associou e todos os meses nós recebíamos um livro.
Em 2017, Patrícia misturou essa lembrança com um movimento internacional elogiado por autoras e editoras em todo o mundo. Tornou-se, ao lado das amigas Maressa Libna, Jacqueline Lopes e a irmã Poliana, coordenadora do Leia Mulheres.
A ideia surgiu em 2014 quando a escritora britânica Joanna Walsh lançou a hashtag #readwoman2014, para chamar a atenção das pessoas para lerem mais escritoras mulheres. Inspiradas por esse movimento, as brasileiras Juliana Gomes, Michelle Henriques e Juliana Leuenroth, criaram um clube de leitura com essa marca, fazendo nascer a proposta em versão nacional.
A ideia se espalhou por todos os cantos do País. O Rio Grande do Norte tem quatro grupos, sendo os outros em Natal, Mossoró e Assú. Os grupos fazem parceria com editoras, mas, principalmente autoras sem intermediações do mercado, permitindo uma interação mais real e humana.
Tudo começou quando Patrícia e Maressa fizeram um simples contato pelo Facebook. Hoje, o Leia Apodi é um dos mais importantes movimentos culturais da cidade e referência nacional entre leitoras do grupo. Apesar de o grupo ser pequeno, sua reverberação na cidade, sobretudo através das ações que realizam, alcança muitos lugares e permite a construção de perspectivas novas na juventude feminina.
Mais que superar os desafios, Patrícia se reconstruiu e levou consigo um mundo todo. Usou a educação para transformar as pessoas positivamente e a literatura como caminho de autoconhecimento e direcionamento da vida. Mia Couto, Eliane Brum, Djamila Ribeiro, Rebecca Solnit, Chimamanda Ngozi e Valter Hugo Mãe são autores que lhe cercam com frequência, fortificando o alicerce construído à base de dor e lágrimas. Não por acaso isso a tornou mais forte, afinal, como disse Cyrulnik, a resiliência é um tecido que une a lã de maior desenvolvimento com uma lã afetiva e social.
Tenho contato frequente com Patrícia, muitas das vezes divergimos (teimamos) sobre alguns assuntos. Sua força é meio indomável, ao mesmo tempo em que é muito admirável. Estive com seus alunos na escola onde trabalha. No meio de uma palestra sobre crônica, uma aluna, sentada ao fundo da sala, se sentiu perseguida por minha fala e me questionou sem medo. Percebi imediatamente que Patrícia regava bem suas sementes e que, certamente produzirá frutos grandes e doces.
Cismada, porque ela é cismada, fez vários questionamentos do motivo de eu querer escrever o seu perfil. Pensa ela ser uma pessoa simples, o que não é mentira, mas quem a conhece de perto sabe que ali dentro mora um ser maior que ela mesma, maior que o lugar em que vive. Dentro de Patrícia adormece uma escritora de palavras fortes e necessárias que precisa ser libertada o quanto antes. Foi por aí que comecei nossa conversa na tentativa de arrancar o máximo possível dessa afirmação.
– O lugar onde você mora é diferente dos lugares citados e vividos por Chimamanda Ngozi, García Marques ou Mia Couto?
– Não, de jeito nenhum. Chimamanda nos apresenta uma terra com cenas de machismos e micromachismos diários contra as mulheres, que se revelam, em sutilezas quase naturalizadas, por lá e aqui. Mia Couto me conta histórias como se fosse meu avô, me apresenta um chão de terra batida, como a do terreiro de casa; me reconecta com ancestrais africanos, usa falas e gestos tão nossos, traz a figura feminina com força e luz. Me identifico, me reconheço, me acho. Gabo, me leva a Macondo e eu consigo reconhecer tanta gente em cada um daqueles Buendia. Talvez eu carregue de muita subjetividade a minha leitura a ponto de gerar essa identificação, mas no fundo, acredito mesmo é que somos todos um só. Não importa muito onde estejamos, reagiremos com humanidade, quando isso não for mais possível, habitaremos territórios perdidos, inclusive em nós mesmos.
– De que maneira a literatura resignifica sua visão sobre o lugar onde habita?
– Quando me reconecta a minha terra, quando me faz afetar positivamente o olhar sobre essa terra, me lembrando onde e como podemos melhorar. É muito mais sobre quem habita do que sobre onde habita. Se não nos responsabilizamos pela vida em comunidade, a vida perde muito o sentido. Nada somos sem o outro, e a literatura pode ser essa ponte entre nós.
– Existe em Apodi um movimento novo em favor do resgate dos povos Paiacus, índios dizimados e invisibilizados pela imposição do colonialismo. Como esta luta impacta sua percepção de mundo?
– Essa luta é imprescindível. Resgatar essas identidades é resgatar suas humanidades. Nós conhecemos uma história única, contada a partir do homem branco. Essa narrativa produziu ciência, epistemologia, discurso e políticas, e ocupa diversos espaços, provocando a morte simbólica dessa população que continua aqui, mas não se reconhece, não se identifica, porque não está representada. É preciso que se ouse e se lance na construção de novas narrativas, oportunizando fala a essa população. É preciso desconstruir a ideia de índio que está impregnada na nossa cabeça, como selvagens, não civilizados, preguiçosos. Desconstruir a ideia do índio nu, com penas e plumas. Desconstruir a ideia de que houve conquista de terras pelos brancos. É um grande desafio que se coloca, mas há a possibilidade através de uma educação decolonial.
– Esta questão indígena tem alguma relação com a luta feminista?
– São populações que sofrem opressões de gênero, raça e classe e que precisam ser olhadas a partir de uma perspectiva interseccional. Se observarmos a luta feminista pelo sufrágio, pelo mercado de trabalho, pela autonomia sobre os corpos, contra os contextos de violência e contra a violência perpetrada pelo Estado, observamos que os discursos excluem a população negra, bem como a indígena dessas lutas. De que mulheres estariam falando no movimento? É preciso corrigir rotas o tempo todo nesse sentido, incluir o máximo de demandas possíveis e, assim, fortalecer o ativismo. Do mesmo modo, que a luta indígena deve ser uma luta de todos nós, precisamos ocupar o mesmo território, de fato.
– Qual o peso de ser mulher em um mundo em que o maior número de feminicídios é praticado por pessoas de dentro de casa?
– Ser mulher em uma sociedade firmada nos moldes cis-hétero-patriarcal é complicado porque tudo que for diferente desse padrão está condenado a desaparecer literalmente. Todos os dias, sair e demarcar território, gritar sua sobrevivência, reclamar igualdade salarial, igualdade na política é algo quase inacreditável. A maior pauta da luta atualmente é manter a vida. Isso é um retrocesso.
– A educação escolar poderia salvar mais meninas ou a pressão sobre a escola é maior do que ela pode suportar na atualidade?
– Não só pode, como é dever moral e social da escola salvar mais meninas. Mas essa também não é uma luta fácil, por inúmeros motivos. Estamos submetidos a uma epistemologia dominante que excluiu, invisibilizou, omitiu a presença feminina de muitos espaços, inclusive o escolar. Mulheres não são heroínas nos livros de história, não figuram suas descobertas nos livros de ciências, não estão indicadas pelo cânone literário. E sempre que alguma mulher escapou ao silenciamento e apagamento, sua história aparece atrelada ao marido, companheiro, pai, e é quase sempre branca e de classe privilegiada, reforçando o discurso patriarcal. Se dentro da escola a mulher sofre sub-representação, aqui do lado de fora não é diferente. E hoje temos como agravante o discurso ultraconservador desse (des)governo, que ignora toda uma trajetória de luta e sugere absurdos, como não poder falar de gênero em ambiente escolar, mas apesar da pressão de fora, cabe a essa resistir. A escola é lócus privilegiado de formação, não cabe a ela a redenção, mas é obrigação da escola pautar seu trabalho com a inclusão de todas as narrativas. Vidas femininas importam, vidas negras importam, vidas de homossexuais importam, e todas essas populações estão dentro da escola, que precisa protegê-las e fortalece-las para enfrentar o mundo intra e extra-muro escolar.
– O quanto estes fatos e o passado de outras mulheres interferem em suas tomadas de decisões?
Hoje eu diria que totalmente. Trago para a minha vida essas pautas, elas estão comigo na sala de aula e fora dela. Saber sobre a nossa história, quem são nossos ancestrais, nos ajuda a construir uma identidade e nos ajuda a traçar um caminho a seguir. O fato de ser mulher me convida/convoca a me colocar em lugar de todas as outras e pensar por todas elas. É como diz a tradição Ubuntu, repetida tantas vezes por Marielle Franco, ‘eu sou, porque nós somos’. Essa deve ser uma tomada de decisão política, pensando nas muitas opressões que se colocam sobre nós, mulheres de toda cor, gênero e classe.
– Qual a literatura de sua vida, quem é você no mundo?
– Tenho buscado escrever uma história com responsabilidade, afetiva, inclusive. Tentar tecer a vida com fios de seda, leve e maleável, não enrijecer, esgarçar ou descolorir ao tocar o outro. Envolver, aquecer, confortar são verbos possíveis nessa trama. A luta é diária e exige observação constante. A literatura de minha vida envolve ainda outra pauta, bem nova, a do feminismo negro. Com muito respeito e cuidado me debruço sobre ela, como estudiosa, que muito tem a aprender sobre a luta dessas mulheres, que seguem sem voz, tendo suas narrativas silenciadas e, através delas, saber de mim. É preciso descortinar o olhar, ceder aos privilégios para só assim poder observar, com justiça, a todos os horrores a que são submetidas às mulheres negras mundo adentro e afora.
– O que quer deixar de legado para outras mulheres nesta vida breve?
– Não penso muito nisso, não tenho preocupação em construir esse legado ou essa história, não tenho preocupação em como se lembrarão de mim quando eu não mais estiver. De que vale se não mais estou? O maior legado que temos é a própria vida, no presente, o que fazemos agora, que impacte no seu mundo e no mundo do outro é o que vale, portanto, cuidar-se, imbuir-se em ser do bem, dar-se as mãos, estender-se em corpo e alma, alcançar a si mesmo e ao outro, ver o outro e ver-se nos outros. Viver é saber dançar ciranda. A roda continua seu compasso.

Comentários

Postagens mais visitadas