A FORÇA QUE NUNCA SECA



Baiana de Alagoinhas, Maira Leiliane tornou-se uma autêntica potiguar com enorme serviço prestado ao Estado na área de Assistência Social. Sua coragem de enfrentar problemas e apontar soluções não nasceram à toa. Tudo faz parte de um processo de vida longo e cheio de descobertas possível apenas para quem tem coragem e resistência.

            Cada vida é uma odisseia. Todos guardamos trajetórias com certo grau de heroísmo e liberdade. Cabe a cada um construir sua própria história, enfrentar seus medos e descobrir o mundo que lhe aguarda.
            Em muitos contos, pessoas saem de pequenos sítios e se tornam notáveis, constroem grandes legados ou memórias. Mas há histórias que seguem caminhos contrários. O que levaria alguém deixar uma capital como Salvador para se descobrir numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Norte?
            Difícil uma resposta. Mesmo hoje, olhando para trás, Maira Leiliane não sabe respondê-la. Aliás, falar sobre isso ainda é uma descoberta em sua vida, considerando ter sido uma menina mimada na infância e juventude. Márcia, sua irmã mais velha, foi quem lhe empurrou do precipício e lhe mostrou a cara do mundo.
– Cheguei a Salvador aos 17 anos para fazer faculdade. Meu pai disse que eu não durava 15 dias. Minha irmã me levou no ônibus até a faculdade e disse que eu tinha de voltar sozinha pra casa. Entrei em pânico e a fiz ir comigo até a sala de aula. Ali ela me deixou e então tive de aprender a me virar sozinha desde então. Foi uma lição importante.
Maira Leiliane Oliveira Almeida nasceu no dia 27 de setembro de 1971 em Alagoinhas (BA) onde viveu até sair para a faculdade de Educação Artística na Universidade Católica de Salvador, em 1988. Com 1,76 de altura chama atenção não apenas pela beleza, mas também pela elegância e urbanidade, algo adquirido de família e, talvez, por um pouco da influência inglesa que respira sua cidade natal.
Última dos três filhos (Márcia, Osmar e Maira) do casal Marivan Almeida, dona de casa, e Osmar Almeida (falecido), servidor público e vereador, teve uma vida boa que lhe permitiu desenvolver manhas de menina adulada.
Perto de terminar a faculdade, Maira já tinha dois empregos: era bolsista na famosa Escola Central da capital baiana e funcionária de uma empresa de publicidade e designer. Desde que Márcia lhe largou naquela sala de aula, ela aprendeu que o mundo é maior que a seu medo.
Ao concluir a faculdade, decidiu ir ainda mais longe. Jogar tudo para o ar e desbravar novos rumos. Apaixonada pelo folclore brasileiro, embebedou-se de enorme curiosidade sobre as tradições potiguares descritas nos livros de Mário de Andrade e Câmara Cascudo.
Em 1992, veio a Natal para um congresso de arte e educação, mas passou pouco tempo. Em janeiro de 1995 veio novamente em busca das paisagens vivenciadas na literatura. Decepção, nada era como tinha lido. Alguém então lhe sugeriu vir na baixa estação. Se programou financeiramente e, em junho do mesmo ano, largou os empregos e retornou a Natal para uma temporada de cinco meses.
Nada mudou nesse percurso. Natal era mesmo uma cidade que não preservava a cultura, nem sequer a imagem de Câmara Cascudo, assim como faz a Bahia com Jorge Amado. Ao invés do coco de roda, da folia do Boi de Reis e da Araruna, deparou-se com uma cidade turística, plastificada.
Os amigos que encontrou eram geralmente de outros estados, entre eles Kithy (Cristiane Andrade), baiana, colega de faculdade e parceira de outras viagens. Kithy namorava o carioca Marco Brito, engenheiro agrônomo que estava trabalhando na Frunorte, empresa instalada no Vale do Açu e ela veio para encontrá-lo.
Marco tinha chamado a namorada para uma festa da empresa em Assú e ela, por sua vez, insistiu até que Maira aceitou acompanhá-la, mesmo contra a vontade. Não estava gostando tanto assim de Natal, que dirá de uma cidade no interior. Tinha permanecido no RN para cumprir os planos, mas estava certa que em novembro retornaria de vez para casa e de lá partiria para reconhecer outros rumos.
Encontraram Marco em um bar no centro de Assú. Lá ele as apresentou a José Valdí de Oliveira, nativo, também engenheiro agrônomo e colega de trabalho. Os dois as levaram para mostrar a cidade. Foram à barragem Armando Ribeiro, ao açude Pataxó e a outros locais visitáveis. À noite seguiram para a fazenda de Valdí onde encontraram com outros amigos.
Maira descobriu que além de cavalheiro, Valdí era também músico e intelectual. Encantou-se com ele que, também encantado, não lhe abandonava a presença. Beijaram-se, mas no dia seguinte voltaram para suas rotinas.
            Trocaram telefone, como ele queria mais e foi ao encontro dela em Natal. Começaram algo parecido com um namoro. Apesar do interesse dos dois, parecia mais uma distração para ela, algo que acabaria em novembro quando viajaria de volta para Salvador. Como de fato aconteceu.
            Despediram-se na rodoviária de Mossoró sem muito drama. Uma despedida de amigos mais íntimos. De Salvador ela foi um congresso em Florianópolis e quando voltou para casa descobriu que ele estava chegando. Reencontraram-se no aeroporto e após aquele gesto não havia mais dúvida, alguma coisa no universo tinha unido os dois.
            Ainda em novembro, Maira se despediu dos pais e veio morar com Valdí em Ipanguaçu. Passou a viver de amor e desinteresse pelo tempo. omo todo mel enjoa, ela teve uma enorme crise existencial.
            Perguntava-se o que tinha ido fazer naquele lugar ermo sem emprego, ocupação e ainda recebendo uma mesada do pai para não depender completamente do companheiro. Duas opções lhe apareceram: voltar para a Bahia ou se reinventar.
E Maira se reinventou.
            Saiu de dentro das paredes, conheceu pessoas, explorou a periferia para sentir de perto a dureza da pobreza humana. Envolveu-se com a comunidade, com os problemas socais. Calçou as botas, assumiu funções na fazenda para ajudar Valdí nas tarefas mais duras e compreender a rotina dos que vivem no mato lidando com a terra e os bichos. Não demorou para cair de amores pela lida no campo e pela fazenda.
            Em 1999, como um sopro do destino, a Prefeitura de Assú abriu concurso com vaga para Artes. Ela passou em primeiro lugar. Assumiu a função na abertura do ano letivo, grávida de João Hélio, seu primeiro filho, hoje com 19 anos. Trabalhava a noite na Escola Municipal Nair Fernandes dando aulas de Educação Artística.
            Sua dedicação e perspicácia a levou a fazer parte da equipe pedagógica da escola. Pouco tempo depois, foi convidada para assumir a vice-diretoria do Centro Educacional Pedro Amorim (CEPA), função que passou a cumprir durante o dia.
            Em 2000, o Estado também abriu concurso para Assú e ela novamente passou. Deixou o CEPA e começou a trabalhar no Instituto Padre Ibiapina (IPI). Mas lá também durou pouco. Algum tempo depois, foi chamada para coordenar o setor de cultura do Centro de Atenção Integrada da Criança (CAIC). Neste período, se envolveu nas capacitações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), o que lhe rendeu enorme experiência e visibilidade.
Três anos mais tarde, Maira nem de longe tinha lembrança daqueles dias de angústia na fazenda do marido. Era uma mulher ocupada e concorrida. Gostava tanto de Assú que não pensava mais em sair de lá. Em 2004, ficou grávida de Maria Júlia, hoje com 14 anos e em 2007 saiu da sala de aula para assumir um cargo técnico estratégico na secretaria municipal de Educação.
            Em 2009, o bioquímico Ivan Júnior, que tinha sido eleito em outubro do ano anterior, assumiu a Prefeitura de Assú e imediatamente a indicou como secretaria-adjunta da Educação. Seu desempenho foi tamanho que meses depois ela foi promovida a secretária municipal de Desenvolvimento Social e Habitação, um dos cargos mais disputados em qualquer gestão do interior.
            Foi neste período que nos conhecemos. Eu tinha entrado há pouco tempo no Jornal de Fato e fui a Assú cavar pautas. Chamou-me atenção a quantidade de dados e informações que ela possuía, o que a tornou, de pronto, uma importante fonte de notícia. Entre matérias e informações, basicamente por telefone, nos tornamos amigos, o que me permitiu acompanhar o que talvez tenha sido o momento mais difícil de sua vida.
Próximo do final de 2013, ela estava a caminho da Bahia com a família para passar o réveillon. Na estrada, notou algo diferente. Valdí falava pouco e tinha atitudes estranhas. Antes mesmo de chegar a Alagoinhas, ela ligou para a família e pediu que providenciasse uma consulta médica para ele.
            O clínico geral indicou um neurologista que os atendeu no dia 6 de janeiro. O diagnóstico foi como um tiro. Câncer no cérebro em estágio quatro. Não havia mais nada que se pudesse fazer a não ser promover o mínimo de sintomas, o máximo de sobrevida e a melhor qualidade de vida a ele, sendo a cura altamente improvável.
            Maira se deu conta de que começou a perder Valdí antes mesmo de chegar à casa de seus pais. Apesar do diagnóstico, a família e os amigos nunca desistiram, mas ele ia desaparecendo aos poucos. 
Desde a Bahia não reconhecia mais quem era Maira. Sabia que era importante para ela, mas sequer lembrava seu nome. Apenas lapsos de memórias antigas, de pessoas distantes, momentos longínquos.
            No dia 26 de dezembro de 2014, aos 58 anos, Valdí viajou antes do tempo. Deixou uma região inteira de luto. Artistas lembraram sua importância como músico; políticos, a sua atuação como militante.



            De mulher altiva e forte, Maira apequenou-se. Seu rosto tentava esconder a dor que lhe destroçava o peito. Dias e noites cruéis e sem resposta. Era necessária outra vida para suportar tamanha angústia e desentendimento com os céus.
            Mas, novamente, teve de tomar uma decisão. Morrer junto ou resistir à vida e terminar de criar os filhos tão destruídos quanto ela. No meio dessa luta, a única coisa que não deixava sua cabeça era sair de Assú, afastar-se um pouco das imagens que lhe traziam lembranças dilacerantes.
Procurei entre a dor e o desespero desenvolver o sentimento de gratidão, de perdão e de resiliência. Foram momentos de grande aprendizado. A dor serve para isso. Hoje entendo que podemos nutrir o sentimento que mais tememos que é a saudade, mas não nutrir para nunca esquecermos a dor, pelo contrário, nutrir para saná-la. Afinal, só sentimos saudades do que nos faz bem.
            Ainda em meio à beira do abismo, em 2015 uma oportunidade lhe bateu a porta como uma bênção enviada não se sabe de onde nem por quem. Maira recebeu o convite para ser secretária-adjunta da Secretaria Estadual de Trabalho, da Habitação e da Assistência Social (Sethas) na gestão Robinson Faria. Isso lhe permitiu mudar-se de vez para Natal, lugar onde já estava a maior parte do tempo.
Enquanto a secretária Juliane Faria cuidava das atividades políticas, Maira atuava como técnica em assuntos estratégicos participando das mais importantes comissões e decisões da Assistência Social do Brasil. Entre Natal e Brasília, viagem quase que semanal, ajudou o Estado a avançar em muitas questões importantes.
Ao longo de quase dez anos de trabalho, ela transitou por espaços estratégicos como o Colegiado Estadual de Gestores Municipais de Assistência Social (COEGEMAS), integrando a diretoria e depois assumindo a presidência, e o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (CONGEMAS), onde foi do conselho fiscal da diretoria.  
No âmbito das instâncias de pactuação teve participação ativa na Comissão Intergestora Tripartite (CIB), chegando a coordená-la. Participou ativamente do Fórum Nacional de Gestores Estaduais de Assistência Social (FONSEAS), através do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), órgão do qual foi presidente entre 2016/2018.
            – Nesse ínterim a minha vida se transformou. Entre os desafios, decepções, sofrimentos, lutas e encantos que essa área proporciona, diria que acolher e possibilitar a transformação na vida daqueles que mais necessitam se tornou o nosso maior propósito e, com essa conscientização, a nossa força e desejo de mudança se renovou.
            Maira não é formada em Serviço Social, mas começou a amar este campo desde quando passou a conhecer a realidade das pessoas simples do Vale do Açu, bem como as circunstâncias de seus alunos.
A dor e a superação fazem parte da vida do brasileiro, alguns com mais condições de superação, outros carentes de assistência e cuidado. Não é possível entender os contextos sociais brasileiros sem ter vivenciado certas experiências e, talvez, seja isso que a tenha tornado uma das profissionais mais sensíveis na vivência com o trabalho social. Alguém capaz de entender o Brasil como um lugar plural e observar seu povo a partir de vários ângulos.
– São diversos os olhares possíveis: é o olhar para si, para o outro, para o ideal de sociedade e muitos outros. Os serviços desenvolvidos no âmbito da assistência social visam a garantia dos direitos, a proteção social, a redução das desigualdades e das vulnerabilidades sociais e o desenvolvimento humano. O olhar apurado traz consequentemente uma série de demandas e afiançar seguranças socioassistenciais aos usuários é o nosso dever e maior desafio.
O Brasil ainda é um lugar com grandes violações de direitos, vínculos familiares e comunitários rompidos, com baixa autoestima, pouca capacidade de proteção das famílias, indivíduos e comunidades em situações de fragilidades e isso ela viu desde a Bahia, em sua chegada ao RN diferente dos livros de Cascudo.
A realidade social brasileira e as muitas e diferentes “realidades” ainda lhe comovem. A ausência de perspectivas de tantos jovens, o abandono das crianças, mulheres vitimadas, desrespeitos as mais diversas comunidades tradicionais, as minorias. Tantos fatores que ainda caracterizam a realidade nacional enfrentada pela população que reside em locais subdesenvolvidos e periféricos e que exigem maior aproximação dos gestores e políticas públicas.
– Temos um desafio constante e necessitamos chegar mais próximo dos mais necessitados. Precisamos que as políticas públicas funcionem em perfeita harmonia, que os serviços básicos protetivos sejam melhores estruturados e ampliados para que se diminua a violação de direitos no nosso País. Por essas e muitas outras questões que fico feliz em continuar me indignando, em tentar diminuir a minha cegueira ao meu redor (a pior cegueira é aquela que não enxerga as desigualdades ao seu redor) por continuar a acreditar que podemos contribuir para uma sociedade mais justa.
 Com o fim do governo Robinson Faria, Maira conclui mais uma etapa de sua caminhada. Ficar em Natal, voltar para Assú, são questões que estão em sua mesa, mas uma coisa ela sabe de certeza: continuará atuando na Assistência Social na perspectiva de contribuir com o desenvolvimento desta área.
Escrever, realizar palestras e auxiliar gestores que precisem de apoio são caminhos que seguirá agora. Manter-se próxima das questões sociais lhe parece ser, uma forma de gratidão e superação dos desígnios que a vida lhe apresentou.
A certeza de que tudo muda a todo o instante não mais lhe apavora, ao contrário, lhe torna atenta ao mundo e forte para si mesma. Questões basilares para inspirarem o recomeço do próximo poema épico que constitui o caminho de cada um de nós e nos ensina a sobreviver a qualquer desafio surgido nos mares da vida.



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