“UM NEGRO NÃO É UM HOMEM, MAS SIM, UM HOMEM NEGRO”


Aos 27 anos, Eliano prova que a arte provém de cabeças qualificadas e pessoas que conhecem a realidade social e o contexto em que vivem. Cantor e compositor dos melhores da nova safra, este jovem das Letras se mostra também um grande pensador.


            “Você se arma e a gente se ama”, começa assim a nova marchinha pop/folk de Eliano, uma das mais puras e autênticas vozes da nova safra da música brasileira.
Entre o romantismo e a crítica social, este jovem cantor e compositor de apenas 27 anos tem apresentado um repertório muito qualificado, à altura dos grandes nomes. Esta música, assim como outros manifestos seus chega em hora propícia para o momento social e político que atravessa o País.
Sua presença complementa as muitas composições de resistência surgidas nos últimos dois anos diante da onda conservadora que se espalha. Assim como Caetano Veloso, Daniela Mercury, Gal Costa, Chico César e outros, ele deixa claro o recado da necessidade de observarmos nosso contexto com atenção. Tudo isso sem abrir mão da afetividade e, principalmente, da resistência, como está dito no último verso da referida música: “Ninguém larga a mão de ninguém/ seu presidente não vai nos calar/ aqui está presente a nova cena da cultura potiguar”.
            Conheci Eliano em Pau dos Ferros, cidade onde nasceu e vive desde sempre, não me lembro em que contexto. Mas nosso vínculo se estabeleceu efetivamente por volta de 2015 quando ele musicalizou a letra “Dentro do Televisor”, de minha autoria. A primeira versão ele tocou para mim na minha cozinha em Mossoró.
            Uma das seis canções do seu EP (Extended play) intitulado “Ecdemomania”. A palavra que quer dizer “desejo, considerado fora do normal, de estar longe de casa; vontade patológica de perambular longe de casa” dizia tanto sobre ele quanto o próprio disco e a música que concluímos juntos.
            “Não me peça neste dia/ para ser o que eu não sou/ a vida é um dilema, baby/ se foi o que perguntou...”, começa assim este folk contemporâneo. Minha surpresa é que na gravação ele acrescentou uma fala, não prevista no texto, que diz: “... vê se cresce, você não pode ser poeta pra sempre! Era até interessante na juventude, mas poesia não bota comida na mesa não! Você precisa é arrumar um emprego. Que tal em algum jornal? Cresce, cara!”.
            Essa foi uma sacada que me emocionou. Fabulosa observação que resumia uma parte sincera sobre nossas vidas. Eu jornalista cartesiano sonhando ser poeta, ele música brilhante tentando viver de arte. A voz que fala no texto é feminina, o que nos remete supostamente as nossas companheiras se reclamassem de nossas utopias, mas, também à consciência que nos entalam a garganta.
            Negro franzino de cabeleira crespa e uma elegância de Djavan, se apresenta como alguém singelo, mas é, na verdade, um jovem brilhante de ideias grandes,.
Antonio Eliano Juvencio da Silva nasceu em 7 de dezembro de 1991. Também se assina como Eliano Ôgá que no candomblé Ketu representa aquele que canta, o responsável pela orientação das curimbas e o que toca atabaque, referências ao espectro negro que lhe rege o corpo e o espírito autêntico de brasilidade.

            Filho de um relacionamento extraconjugal entre seu pai, Antonio Juvencio e Maria Ivanilda da Conceição, ficou órfão de mãe aos três anos, sendo adotado por Maria Leite de Sousa, primeira esposa de seu pai. É um dos mais novos de uma família de 12 irmãos, sendo 4 de sua mãe legítima.
            Estudou nas escolas Professor Severino Bezerra (municipal), Dr. José Fernandes de Melo (estadual) e Professora Maria Edilma de Freitas (estadual). Cursou Letras no Campus Avançado Maria Elisa de Albuquerque Maia (CAMEAM) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), concluindo em 2017. Atualmente é estudante de Mestrado em Literatura no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL/UERN).
            Menino simples, de família humilde, aprendeu na rua a olhar o mundo. Em Pau dos Ferros se fez e mostra que no interior tem muito a ser conhecido, apesar das dificuldades sociais e culturais universais das pequenas cidades.
– Cresci e moro em Pau dos Ferros. Não me apresento muito por aqui. Há uns anos, eu organizava um sarau mensal na praça em que eu me apresentava junto com outros poetas. Essa atividade deixou de ser corriqueira, devido as ocupações acadêmicas.
Sua fala carrega certa nostalgia ou vontade de ver a coisa acontecer, a banda passar, o circo armar a lona, os violões voltarem a soar abaixo das janelas. A arte está em seus genes, mas sua cabeça está bem assentada no pescoço. Depois do Mestrado quer fazer doutorado relacionando música e literatura, com proposta de uma aula show com canções compostas por compositores negros.
– Pretendo seguir carreira na docência como principal atividade profissional para ter liberdade de fazer arte sem a preocupação de ter resposta financeira.
A afirmativa do menino engajado na causa negra e na boa música popular brasileira não poderia soar mais poética. Aliás, esta foi sua primeira arte, coisa que começou desde antes de saber que o nome daquilo era literatura.
Da poesia nasceu em 2017 o livro “Quase não me recupero do golpe que seus olhos me deram”, lançado na FlipAut, o Festival Literário Alternativo da praia de Pipa. Neste ano está previsto o lançamento de “Diafragma”, uma antologia de poemas e fotografias com outros 12 poetas potiguares.
Quem veio primeiro a poesia ou a música? Na criação a poesia, mas na exposição a música, porque antes, como dito anteriormente, em 2015 ele havia lançado o EP Ecdemomania. A paixão pela música surgiu na adolescência quando começou a tomar aulas de violão. Acabou virando guitarrista e tocando em bandas de rock.
– Não me vejo não fazendo música pelo resto da vida –, diz.
Pelo disco de nome complicado foi indicado ao Prêmio Hangar na categoria Revelação Musical em 2016 e ao Troféu Cultura, do site Substantivo Plural, no mesmo ano. O cara que não sabe se toca folk ou só MPB diz ter como base as músicas de Caetano, Gil, Lenine, Chico César e Arnaldo Antunes, mas suas composições lhe remetem a muito mais, coisa que vai desde Raul Seixas a Jards Macalé, da canção tradicional ao mais novo experimento pop da música americana.
– Minhas composições são bem intuitivas, geralmente vem letra e melodia juntas. Mas já experimentei processos em que eu primeiro fiz a música e depois a letra, em parceria com outros letristas. Existem músicas que fiz em minutos e outras que estão, há anos, esperando eu concluir.
Eliano é um experimentador, alquimista das possibilidades sonoras. Um lutador rodeado por cercas e muros complexos que o aprisionam, a exemplo da grande massa de novos artistas que surgem neste país difícil. Mas sua cara diz que nada disso o abala, pois seu olhar sereno denuncia que ele conhece seu próprio caminho.
Faz tempo que não encontro Eliano. A última vez que nos vimos foi em sua casa, em Pau dos Ferros, quando fui pegar uns discos. Eu e Regiane, minha esposa, fomos recepcionados primeiro por Mariane Lima, sua musa inspiradora de muitas canções, entre elas a linda “Dance um pouco morena”: “Queima a pele no sol, morena/ cê de perto é tão pequena/ dá vontade de pegar na mão/ preencher com você meu coração...”. Ele chegou depois, tímido, meio sem graça.
Para a conversa de hoje, o contatei através das redes sociais e e-mail. Acompanhar sua trajetória é uma coisa, entender o que ele pensa fica mais forte se deixá-lo escrever, afinal é disso que se constrói a sua vida. E foi isso que motivou minhas perguntas:
– Para quem você canta?
– Eu canto para as pessoas que, por ventura, queiram se conectar comigo. Canto para mim mesmo, para poder me comunicar. Devido a minha imensa dificuldade de falar sobre coisas íntimas. Não sou o tipo de alguém que conversa. As pessoas que me cercam chegam a reclamar do meu silêncio. As que não me conhecem me acusam de ser antipático. As músicas que escrevo são para essas pessoas me acessarem. Cantar é uma tentativa de dizer “olhem, eu estou aqui, eu amo vocês, eu sinto tais inquietações, eu não gosto disso ou daquilo, eu penso assim, assado”. Através da poesia, eu digo o que de outra maneira eu não diria. Canto para as pessoas que estão esperando que eu me expresse. Por isso meu canto é subjetivo. Por outro lado, canto pro mundo, porque essa subjetividade é universal. Devem haver outros como eu que não sabem naturalmente falar de si e na mesma proporção há aqueles que esperam ouvir.
– Sua música tem uma identidade – a música precisa ter uma?
– A música não precisa ter uma identidade. Para mim ela precisa ser sincera e, na maioria das vezes, uma coisa leva a outra. No meu caso, o que eu canto tem a ver com a identidade de um sujeito em movimento, que fala de um determinado lugar, e esse lugar toma forma na minha canção. Sou um negro e minha música é negra, sou nordestino e minha música é o Nordeste, sou politicamente alinhado à esquerda, o que faz com que eu use a arte também como ferramenta de luta. Quando eu canto, as pessoas logo notam o meu sotaque. Uma vez um produtor de Natal me disse que eu deveria disfarçar o meu sotaque se eu quisesse ter a aceitação nacional, deveria, portanto, padronizar minha linguagem para soar como soa um cantor de São Paulo por exemplo. Acatar esse conselho seria começar a abrir mão da sinceridade. Minha música é um compilado daquilo que me rodeia. Eu canto o que eu acho que sou e para isso eu nem preciso me preocupar com a identidade da minha música, basta eu me olhar no espelho e fazer uma canção. Pronto, a cultura que me cerca, desde o convívio no meu bairro até as coisas que vivi na universidade, é traduzida naquele momento. Cabe a mim estabelecer uma negociação entre aquilo a que eu fui submetido no convívio familiar e aquilo que eu busquei fora dele. Tudo isso molda minha identidade, identidade flutuante, assim eu escolho que tipo de discurso quero que minha música tenha. Por exemplo, você obviamente já reparou o quanto a música popular é permeada por preconceitos raciais, machismos, homofobia. Então, isso é uma preocupação que eu tenho, o que também influencia a identidade da minha música. Agora, essa busca por acentuar a identidade musical não pode ser uma paranoia, senão compromete a sinceridade e faz com que a música se torne uma caricatura, uma identidade de mentira, que não reflete mais a verdade de nenhuma cultura.
– Qual a relação entre a liberdade do corpo e da cor da pele?
– O meu corpo está envolto de uma pele negra, logo, ele está condenado à liberdade que tem um corpo negro. Essa liberdade me condena a existir sendo resistência. Se por descuido ou alienação eu esquecer da relação entre o meu corpo e a cor da minha pele, estarei limitando mais ainda a minha liberdade. O existir de um homem negro é diferente do existir de um homem branco, essas são palavras de Frantz Fanon, porque parte desde princípio, seja lá para aonde estiver indo, um negro não é um homem, mas sim, um homem negro. Há bem pouco tempo, quem tinha a cor de pele que eu tenho, era uma criatura sem espírito amaldiçoada do “deus”, e por esse motivo, o humanismo não podia fazer nada por ela. Esse fato histórico influencia no olhar atencioso do segurança quando o meu corpo envolvido por essa pele escura passa.
– A música e a poesia caminham lado a lado, mas não são a mesma coisa. Ou são?
            – Bob Dylan ganhou o prêmio Nobel de literatura. Não estou querendo dizer como isso, que o poema precise ganhar um Nobel para ser poema. Mas somente iniciar essa reflexão. Um letrista ganhou um prêmio que naturalmente é concedido à romancistas, poetas etc. Tantos compositores, músicos, ocupam as cadeiras das academias de letras brasileiras. A música é poesia e a letra de música é poema. O que acontece é que alguns poemas dão ótimas músicas e outros vão para as páginas de livros e são no máximo recitado em voz alta. Frequentemente algum poeta amigo meu me envia um poema para que eu musique. Frequentemente se decepcionam com a minha incapacidade de transformar tal texto em canção. E aqui vai uma das diferenças entre o poema e a letra de música, o que contribui para que alguns textos virem canções e outros livros: quando você lê um livro, geralmente você se prende ao texto, pode demorar horas numa página refletindo, captando aquilo que lê. Por isso, o poema pode ser abstrato, complexo. A letra de música, aparentemente, deve ser fácil. Não significa que não possa ser complexa. Fácil não quer dizer superficial. Quando a gente escuta uma canção, que dura quatro minutos, temos quatro minutos para pensar sobre ela. Se ela for abstrata demais, pode não alcançar o cara que escuta uma FM no carro ou pode não entrar na playlist no Spotify da moça para ouvir no fone de ouvido. Tocar ao vivo no show barulhento então e ninguém entender é foda. Bom, a não ser que se trate de uma música muito doida, experimental, dessas que a galera anda fazendo. E que também é pura poesia. 
– O que a arte do interior tem a dizer às capitais?
– O artista pode ser do interior, mas a sua arte é do mundo. Não existe uma arte de Pau dos Ferros, por exemplo, pois cada artista pauferrense trata de sua própria subjetividade, de sua própria Pau dos Ferros, essa subjetividade torna a arte universal. No meu álbum novo, que está em produção, a primeira música se chama “Qual o seu interior?”. Eu tenho o meu, que é diferente dos outros. Na capital eu sou só mais um artista cosmopolita vindo do interior fazendo arte que não é de lugar algum e pode ir para todos os lugares.  
– As distâncias estão menores com as redes sociais ou, na prática, a realidade é outra?
– Sim!  A internet é uma ponte que liga o Brasil de uma ponta a outra. Ir para o sudeste não é tão necessário como era antigamente; é bom ir, claro. As oportunidades, inclusive de produzir conteúdo para a internet, são dramaticamente maiores em cidades como São Paulo, os canais do YouTube mais acessados são os de lá.  Mas, nitidamente, é mais fácil hoje com a internet, aproximar-se das pessoas. Dos produtores ainda é difícil, eles não são nem gente, tudo normal (Riso).
– Quais os sonhos que lhe invadem a alma e inquietam o espírito?
– No momento eu tenho sonhado com a redemocratização do País.
– O artista engajado e com uma causa na mão, como é seu caso, é um artista careta e politicamente correto demais?
– Não. Vamos supor que você ache que um artista é politicamente correto, pelo fato de ele tomar cuidado com o discurso no sentido de não reproduzir a Cultura patriarcal e racista herdada das gerações passadas. Esse artista não é careta. Ele está nadando contra uma maré. Careta, para mim, é o artista que, acomodado, conservador, contribui para a manutenção dessa cultura. Careta é querer censurar uma performance artística que questiona os valores postos da sociedade, por exemplo. Careta foi a Ditadura Militar brasileira que perseguiu os artistas que se engajavam às causas sociais. Todavia (e eu acho que entendi o que você perguntou), a arte não pode ser refém das convenções sociais, apesar de ela ser um tipo de medidor do comportamento humano. Um romance de Machado de Assis, por exemplo, tem muito a dizer sobre o comportamento da sociedade brasileira do século XIX. Na nossa, século XXI, é bem careta produzir uma arte com o mesmo discurso do século passado. De todo, a arte não pode ser refém do politicamente correto. Arte é representação, não, realidade. Tenho visto no Facebook muitos poemas que mais parecem cartilhas políticas que só dizem, ditam regras e coisa e tal. Falta arte nesses textos quando o politicamente correto se sobrepõe sobre a estética. Ser artista é se equilibrar entre a caretice e a embriaguez.
– A rua ainda será um campo de guerra ou apenas um espaço vazio?
– Não acredito que nas ruas resolveríamos os problemas do Brasil. Eu vou para a rua se necessário, queimar pneu e etc. Mas a democracia é um caminho mais eficaz. Infelizmente, nós não sabemos o que fazer com a democracia e a entregamos nas mãos de gente que não acredita nela. É preciso ir pra rua para incomodar. Uma democracia que não funciona permite arbitrariedades do judiciário brasileiro. Uma democracia que não funciona é capaz de tornar a rua um campo de sangue. Todo cuidado é pouco.
– A música será suficiente para o resto da vida?
– A música será necessária para o resto da vida.


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