"A VIDA PASSOU E EU NÃO VI"
Ela terminou os estudos depois dos 30 e se formou próximo dos 40 anos. Mãe de sete filhos, passou a vida mudando de cidade para acompanhar os pais ou o marido. Aos 77 anos, Dulce Cavalcante tornou-se uma escritora reconhecida e uma figura disputada nas rodas literárias de Mossoró, onde vive desde 2002, mas, sobretudo, um símbolo de resistência e resiliência.
Em março de 2017 ela exibiu uma foto marcante,
após transformação no salão de beleza. A poucos dias de completar 76 anos, reforçava,
com ajuste no corte, a força vibrante do branco em seus cabelos. Uma vitória
expressa na cara do mundo. Capucho de algodão mocó, ouro branco augusto,
símbolo do tempo e da sabedoria acumulada na resistência ensimesmada da vida.
Vera Holtz, Fernanda Montenegro, Maria Bethânia, Meryl Streep, todas iguais a
ela na coragem de assumirem-se divas, donas da própria liberdade da alma, do
corpo e de suas memórias.
Não me lembro do dia em que conheci Dulce
Cavalcante, mas acho que poucos se lembram. É tão natural sua presença que
esses encontros se enraízam na zona pilosa das lembranças e logo estamos
íntimos. Sua elegância unânime faz de sua presença um ato cerimonioso de
sorrisos e abraços. É doce, como o nome sugere, mas os que dedicarem mais atenção
à degustação de suas palavras sentirão um ardor acentuado de pimenta e certo
amargor de lúpulo, sabores específicos que compõem a sua forma de se impor no
mundo. Alguém que viu os dias passarem rapidamente, mas não permitiu ser
vencida por nenhuma pressa.
Em
nosso último encontro, na varanda de minha cozinha em Mossoró, rimos de empinar
a cara ao ouvir algumas de suas histórias de vida. A fluidez das lembranças e a
naturalidade de como os acontecimentos eram encarados mostram a trajetória de
formação humana de uma mulher que só podia ter se tornado o que é: grande e
forte.
Quando
criança brincava solta no terreiro ou, para ser mais exato, na Praça da Matriz
de Sant’Ana, em Iguatu (CE) onde chegou por volta dos três para quatro anos de
idade. Brincadeiras que hoje não são mais vistas como amarelinha,
esconde-esconde e xibiu, conhecido também como “jogo de pedras”.
– Entrávamos
nas casas de amigos a qualquer hora sem cerimônia e montávamos as nossas
inúmeras e inesquecíveis brincadeiras.
Na década de
1970, já adulta, casada e mãe de família, precisou acompanhar seu marido,
bancário, que foi transferido de uma agência em Quixeramobim (CE) para Mossoró.
Achou a mudança muito radical e, por isso, concordou em deixar o filho caçula morando
na casa de um casal amigo.
– Fenelon e a sua mulher Violeta,
um casal amigo, se apaixonaram pelo meu filho caçula (Samuel Weimar) e se
apegaram demais a ele. Então pediram para eu deixa-lo com eles até a nossa
adaptação na nova cidade. E assim ficou combinado. O tempo foi passando e a
cada período surgia uma desculpa para ficarem mais tempo com ele. Matricularam o
Lourinho, como era carinhosamente chamado, no Jardim de infância até ele
aprender a ler. Era a promessa e assim foi feito. Ficava comigo somente nas
férias. Eu deixei porque achava que era melhor pra ele naquele momento. Eu
acho que foi amor que falou mais alto.
E esta conclusão é o que mais
impressiona. Imagina uma mãe abrir mão do egoísmo para permitir ao filho ter
uma atenção especial, mesmo distante de casa. Amor pelo filho, mas também pelos
amigos que tratavam o “Lourinho” a pão de ló. O resultado foi que Samuel
terminou com duas mães e dois pais e Dulce, que tinha outros seis filhos,
aperfeiçoou seu tempo em casa e descobriu outro tipo de amor maternal.
Dulcinéa Aguiar Cavalcante e Silva
nasceu em Cedro (CE), no dia 31 de março de 1941. Filha do guarda-livros
Joaquim Felício Cavalcante e da dona de casa Humbertina Aguiar Cavalcante, foi
a segunda entre os nove nascidos do casal: José Humberto, Maria Selma, Márcia,
Cláutenes, Lúcio Flávio (falecido), Rita de Cássia, Maria de Lourdes (falecida) e Alfredo Leopoldo.
De tanto mudar de cidade, se
considera uma “retirante”. Até os 19 anos, mais ou menos porque estas datas não
estão muito claras em suas lembranças, viveu entre as cidades de Cedro, Iguatu,
Coração de Jesus (MG) e novamente Iguatu para onde voltou em 1954. Em 1960, se
casou com o bancário Antônio Alves da Silva, no dia 31 de julho. Com ele teve
sete filhos: Jacqueline, Cláudia, Ely-Samuel, Viviana, Samuel Wagner, Daniela e
Samuel Weimar, e iniciou outra trajetória de mudanças de cidades.
A primeira foi para Quixeramobim,
onde ficaram até 1969. De lá seguiram para Mossoró (1970 – 1977), Cajazeiras
(1978 – 1982) e Fortaleza (1982 – 2002), retornando para Mossoró onde vivem até
hoje.
Uma das coisas
que se arrepende foi ter largado o emprego de supervisora escolar do Estado
para acompanhar o marido. Tinha passado em concurso público e, à época, as
dificuldades de locomoção tornavam muito mais distantes os 260 km entre Mossoró
e Cajazeiras. Mas isso não a limitou. Deu a volta por cima através da arte,
tornando-se uma escritora reconhecida na região por sua leveza da pena no papel
e capacidade de simplificar os fenômenos de seu tempo.
– Sempre
gostei de ler. Quando aprendi a ler nunca mais larguei o livro. De repente, senti
necessidade de escrever e sempre rabiscava algumas poesias e prosas poéticas,
que eram logo engavetadas. A escrita sempre foi para mim um arrimo e um meio de
comunicação eficaz e solitário com o mundo. Com os filhos criados e o ninho
vazio, este desejo se fez mais imperioso. Devo à solidão de mim mesma o gosto
pela escrita.
Interessante
nesta observação de Dulce é que ela dedicou muito tempo à família e demorou a
concluir os estudos. A primeira escola que frequentou foi a Estadual Francisco
Ribeiro, em Coração de Jesus, com oito anos de idade. Depois o Grupo Escolar Dr.
Carlos de Gouveia e o Ginásio São José (de freiras), em Iguatu. Depois disso só
quando chegou a Mossoró, perto dos 30 anos, onde terminou o ensino médio no Colégio
Estadual Jerônimo Rosado e cursou pedagogia na antiga Fundação Universidade
Regional do Rio Grande do Norte (FURRN), atual UERN.
Hoje, Dulce
Cavalcante tem quatro livros publicados: Quatro Estações – Poesia – Expressão
Gráfica (2002); Poltrona Azul – Poesia – Sarau das Letras (2008); Bicicletas de
Papel – Poesia – Sarau das Letras (2012); e Um Chão para Memórias Soltas –
Crônicas – Sarau das Letras (2016). Participou de seis coletâneas e foi
selecionada em dois concursos literários: Antologia de Poesias Pe. Donato
Vaglio – Associação de Escritores de Bragança Paulista – ASES, 2004 e 3º
Concurso João Batista Cascudo Rodrigues, promovido pela Academia Mossoroense de
Letras (AMOL), obtendo o primeiro lugar na categoria crônica.
Há 25 anos é
membro do clube de leitura “As Traças”, em Fortaleza. É ainda sócia efetiva da
Academia Feminina de Letras e Artes de Mossoró (AFLAM), e da confraria
Café&Poesia, organizada pela escritora Ângela Gurgel e que reúne, entre
outros participantes, os escritores Antônio Francisco, Clauder Arcanjo, David
Medeiros Leite, Kalliane Amorim e Padre Guimarães.
Transformar
uma vida que poderia ser comum em superação é sinal de resiliência. Movida por
sentimentos próprios e guiada por catarses que lhe desviam das rotinas, Dulce
faz das letras um caminho de liberdade. Em sua cabeça ainda mora uma menina que
sonha andando de bicicleta, desejo pueril reprimido pelo regime patriarcal, mas
concretizado em livro. Diz com leveza as cores do mundo, experimenta a
singeleza das palavras sem pretensão alguma. Escreve a expressão simplesmente
para que fale por ela, mas também por si própria, uma palavra que se refaz no
outro e constitui imagens novas, ressignificadas em cada tempo e lugar de voz.
Falei com ela
pelo Whatsapp para confirmar esta entrevista e, de pronto, obtive um sim.
Estava de viagem marcada para Fortaleza e teve de me responder praticamente em
trânsito. Disse-se ansiosa para ver o resultado, uma delicadeza de sua parte de
demonstrar interesse. Ri com ela ao telefone confirmando datas e provocando
mais confusão em suas memórias. Como lembrar com exatidão de 77 anos de vida
ativa e diversas mudanças de cidade, sete filhos, livros, amigos? Realmente
muita coisa.
Expliquei a
ela que a exatidão era importante para que as pessoas tivessem em resumo um
tantinho de sua longa e bonita história, mas não fundamental a ponto de travar
suas memórias e atrasar nosso texto. Concordamos e a partir daí vieram as
respostas sinceras de alguém que consegue em pouco tempo resumir o muito.
– Muita coisa
em sua trajetória começou tarde. Que lição tirou disso?
– A lição é
quase um clichê: nunca é tarde para sonhar e realizar um sonho. O tempo é o
senhor absoluto da nossa vontade e dependemos somente dele e de nós mesmos. Daí
vem a grande lição que me arrancou de um marasmo intelectual onde havia me
acomodado. Como Cora Coralina, tudo foi muito tarde, mas valeu a pena.
– Você
“dividiu” um filho seu com uma amiga durante muitos anos. O que essa atitude
lhe ensinou sobre o amor?
– Como diz
Neruda “amor que se reparte”, não há outra explicação. Analisando friamente a
situação, reconheço que foi a melhor decisão que já tomei na minha trajetória
de mãe de família. Não houve perdas nem traumas só os ganhos que foram
inúmeros. Meu filho ganhou duas mães e dois pais, amor multiplicado e eterno.
– Na travessia
do tempo você viu muitas mudanças no comportamento humano, na tecnologia e na
política. Quais as coisas que não mudaram neste trajeto?
– Eu acho que
as dúvidas continuam as mesmas desde criança. As certezas não são mais certezas,
há sempre uma dubiedade em cada argumento, no comportamento dos seres humanos. O
homem e a mulher: temos que especificar os gêneros, pois generalizar não é mais
possível e nem mais aceitável. Antes era tudo mais simples e descomplicado.
Hoje eu noto que quanto mais tem avanço nas ciências e na tecnologia mais nos
afligimos na busca incessante. É um paradoxo essa curiosidade incontrolável.
– As mulheres
de hoje são mais fortes e independentes graças a muita luta e resistência. Como
você se vê neste quadro?
– A minha mãe
foi uma mulher muito forte e resistente, eu não chego aos seus pés. Embora me
ache determinada, sou mais tensa e mais descrente. As mulheres de hoje têm a
obrigação de serem fortes para enfrentarem um mundo que ainda é muito machista.
Os argumentos são poderosos e requerem uma mulher forte. Não há lugar para a
mulher sexo frágil, de princesa e fadinhas e elas ainda devem ser lindas,
poderosas e tudo que some à sua lista de imposições. Estou fora dessa corrida,
pois já cumpri o meu papel e me orgulho disso.
– Por que a
poesia?
– Não sei
explicar porque a poesia, mas sei que foram as minhas primeiras investidas nas
letras. E sempre será. Hoje descobri a crônica e estou vivendo um caso de amor
novo e instigante. É muito bom fazer trocas sem compromisso ou deixar as
amarras se afrouxarem em qualquer gênero sem implicar em nenhuma traição
explicita.
– Sua poesia
relata coisas mais cotidianas, imagens comuns de alguém que observa com calma e
não tem muito interesse de elucubrações. A vida é simples ou somente a poesia
é?
– A poesia é
simples, que o diga Manoel de Barros. A vida é complicada e quando procuramos
juntar as duas numa mesma simplicidade fica muito difícil. Creio eu que cada um
tem seu papel na escrita poética. O resultado pode modificar toda e qualquer
dificuldade. Às vezes, precisamos de ousadia para mostrar com honestidade o que
pensamos sem embuste ou enfeites.
– Existe mesmo
uma idade da razão?
– A razão é um
termo muito filosófico para que eu possa dar uma explicação “razoável”. Já
obtive de meus filhos pequenos e netos respostas que me satisfizeram
completamente. Às vezes eu, mesmo sendo intransigente, ou razão não corresponde
ou é muito eficaz.
– Olhando para
trás e pensando com calma, o que você viu da vida?
– A vida
passou e eu não vi. Nunca me preocupei muito com os anos nem com as
atribulações, com as rugas, cabelos brancos e os limites. Assim fui vivendo e
aprendendo, simplesmente. De repente tive sete filhos, escrevi quatro livros e
plantei muitas árvores em muitos quintais mundo a fora.
– Olhando para frente que espera ver ainda da
realidade?
– Continuar como está: cercada da minha
família e amigos, lúcida, saúde estável e a vida caminhando meio claudicante,
mas em frente sempre graças a Deus.
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