A VIDA EM PRETO E BRANCO


Com apenas 37 anos, José Bezerra se tornou um dos fotógrafos mais premiados do Estado utilizando a escala de cinza. Apesar de esta técnica existir desde o século 19, poucos a sabem empregar com tamanha delicadeza e elegância. Porém, seu modo de fotografar não é reflexo apenas de seu olho, mas de como ele entende e trata a própria vida e o mundo em que habita.

Escrever em um jornal impresso de Mossoró foi meu primeiro grande objetivo profissional. Não sabia como isso seria possível porque a distância entre as cidades Apodi e Mossoró é muito maior que os 78 quilômetros de estrada que as separam. José Bezerra, que àquela época conheci como JB Segundo, foi minha primeira ponte.
            Eu trabalhava como repórter da Rádio Vale do Apodi e passei a ser um colaborador esporádico do jornal Gazeta do Oeste a partir do Fórum de Entidades Representativas do Apodi. Apesar de não ser lembrado por isso, eu era um grande cavador de pautas para este movimento social. Zé Bezerra me ligava frequentemente e de nossas conversas sempre saia algo aproveitável. Às vezes eu próprio escrevia os textos e ele publicava com poucos ajustes.
            Quando as coisas mudaram, nos distanciamos. Eu em outra cidade e com novas oportunidades acabei no Jornal de Fato e ele sumido do mapa, ao menos para mim. Reencontramo-nos em 2016, na varanda da minha casa no bairro Costa e Silva, em Mossoró, para discutirmos uma pauta. A reportagem Filhos do Fogo, produzida por nós e Esdras Marchezan, venceu dois prêmios nacionais. Depois disso, não voltamos a nos corresponder como antes, até porque hoje ele está fora do País, mas nunca mais perdemos o contato.
            Desde que nos falamos a primeira vez, me chamou atenção a sua prolixidade. Zé Bezerra é daqueles que falam muito, mas de uma forma estranha que nos prende a atenção e, quando nos damos conta, passaram-se horas. A sensação que fica é que sempre aprendemos com ele, como se estivéssemos acompanhando um monólogo filosófico com várias significâncias.
            A verdade é que Zé não tem pressa. Ele precisa concluir seu pensamento de forma quase cartesiana e é aí onde habita seu método.
Sua forma de viver é distinta e experiencial e isso inclui até a forma de se alimentar. Através de sua esposa Késsia Kalúbia de Oliveira Silva, técnica de enfermagem, com quem tem José Bezerra Neto Terceiro, de 8 anos, remodelou os hábitos alimentares para melhorar a saúde do corpo e da mente, o que, segundo ele, elevaram sua condição física e mental.
– Quando comecei este processo, em vinte dias percebi uma mudança radical. Nunca tive muitos problemas, mas sentia dores e fadiga. Hoje, não sinto nada. Afirmo com toda certeza que atualmente com 37 anos, estou bem melhor do que aos 20.
O segredo, Zé explica, é controlar a acidez do sangue, suplementando as vitaminas essenciais e os aminoácidos. Isso é feito através da dieta cetogênica que remove os produtos industrializados, evitando os conservantes e substâncias tóxicas presentes em muitos alimentos.
– O conhecimento é a chave e a prática desses hábitos saudáveis o caminho. Todavia creio que é difícil para muitos, que cada dia mais acreditam nesta falácia dos produtos alimentares que prometem praticidade. O nosso corpo é o nosso abrigo aqui neste plano, portanto cuidar dele é semear um futuro produtivo e longevo. 
            Admirador do cientista Carl Sagan, mistura a realidade firme e pequena do mundo prático com as possibilidades do cosmos e seus caminhos infinitos.
– Hoje mais do que no passado, creio que somos filhos das estrelas. Química e atomicamente somos compostos por matéria estelar. Esta verdade universal chegou até mim através do seriado Cosmos, de Carl Sagan. Meu respeito por este cientista é tamanha que sempre o cito como a pessoa que mais me influenciou, em todos os aspectos.
Essa relação com a filosofia, a cosmologia e o jornalismo fez surgir em sua vida, como grande paixão e êxito, a fotografia que o torna um dos mais importantes fotógrafos da atualidade no Estado.
Ao todo, José Bezerra já ganhou 28 prêmios, entre concursos nacionais e internacionais. Foi o único fotógrafo que mostrou a praia de Tibau na National Geografic Norte Americana. No entanto, são as pessoas que conheceu neste processo de entendimento de seu ambiente de vida, entre o litoral e o sertão, que considera seus verdadeiros prêmios, aquilo que levará para outra vida.
Uma coisa interessante nesta história é que José Bezerra não é jornalista de formação. Formou-se em Tecnologia em Redes de Computadores (FATERN/Natal) e fez Pós-Graduação em Redes de Telecomunicações (UNI-RN), com o que trabalhou até recentemente depois que deixou os jornais.
José Bezerra Neto Segundo nasceu em Mossoró no dia 12 de agosto de 1981. Filho de José Bezerra Neto, analista técnico do Congresso Federal, e de Sônia Maria do Couto Bezerra, assistente social, é o segundo nascido entre os irmãos: Samara, Raimundo Nonato, Diogo e José.
Apesar de ter uma vida em movimento, vivendo períodos longos e breves entre as cidades de Mossoró, Natal e Macau entre 1981 e 2016, estudou praticamente toda a vida em Mossoró. Foi aluno dos Institutos Maria Montessori, Pequeno Príncipe, Passos Livres e Solon Moura, não necessariamente nesta ordem; dos colégios Sagrado Coração de Maria, Diocesano e Imaculado Conceição (único em Natal) e da Escola Estadual Professor Abel Freire Coelho.
Para completar suas idas e vindas, morou em São Paulo entre 2016 e 2017 e atualmente está em temporada em Orlando, na Flórida (EUA) vivendo uma experiência fotográfica. Mas Mossoró será sempre o lugar que lhe define o sabor da vida.
– A cidade que me acolheu desde o meu nascimento. Das ruas do Santo Antônio aos barreiros da Estrada da Raiz, guardo boas lembranças de uma época onde a violência já existia, mas não atrapalhava a relação da infância com o lúdico.
O jornalismo surgiu em sua vida por acaso em 2002, através do então editor do jornal O Mossoroense Emerson Linhares que o convidou a atuar como repórter, motivado por seu apreço pela leitura. Ali, começou escrevendo sobre cotidiano.
– Foi n'O Mossoroense que conheci Luís Juetê, Sérgio Coelho, Cristiano Rojas, dentre outros jornalistas. Criei gosto. Em 2003, fui para a Gazeta do Oeste a convite de Luís Juetê e Gilberto de Souza. Lá, ampliei as amizades e cresci em experiência. Foi na Gazeta que conheci Esdras Marchezan e Tobias Queiroz. Curioso é que, até então, não atuava com fotografia. Retratava o cotidiano apenas nos textos. O que me manteve no jornalismo e que, até hoje, não se desvencilhou de minha pessoa é a latente necessidade de compreender a realidade ao meu redor.
A ideia de entrevistá-lo para este espaço surgiu, inclusive, de mais uma de suas fotos postadas no Instagram. Imagens sempre em preto e branco de alguém com forte expressão. Entre o sertão e o litoral, as paisagens ganham formas e vida através de suas lentes. Nas composições sustentadas pelos tons de cinza dos elementos, as sombras ganham enorme importância e o preto muito poder, concedendo elegância e superioridade, ao mesmo tempo em que expõe, com maior profundidade e mistério, as emoções. Partiu disso nosso último papo.


– Por que a fotografia?
– Antes da fotografia eu tentei a pintura. Mas na época uma natural falta de paciência para concluir telas com o grau de detalhes que eu pretendia, me fez optar por uma linguagem mais ágil na concepção da imagem. Na pintura, o artista começa com uma tela em branco e põe nela tudo que deseja. A depender da sua exigência, concluir uma tela pode levar muito tempo. Na fotografia, você começa com toda a realidade e escolhe apenas uma pequena parte para encenar aquilo que deseja mostrar. Escrever com a luz, usando o pragmatismo e refino das composições advindas da pintura, me revelou um caminho interessante para registrar a realidade que desejo compreender. Curiosamente, apesar de escolher a fotografia pela falta de paciência, foi a mesma que me ensinou a ser paciente e esperar o momento certo para o registro idealizado. Em síntese, é o conhecido momento decisivo descrito no famoso artigo de Henri-Cartier Bresson. 
– O mundo é preto e branco ou ele fica mais bonito assim?
– Naturalmente é colorido. E todos sabemos muito bem que beleza é um conceito complexo de definir e que muda conforme as gerações. No meu caso, dois anos após dar início aos estudos sobre fotografia, conclui que revelar aquilo que desejo se encaixaria melhor com o uso do preto e branco. Quando comecei a estudar fotografia me deparei com um estilo peculiar, chamado Miksang. Uma expressão tibetana que significa "bom olho". Através do estudo das formas e de conceitos como geometria sagrada, percebi que estas formas e expressões seriam melhor apresentadas através da estética do preto e branco. Curiosamente esta conclusão veio dos estudos sobre neurociência. Os neurocientistas descobriram que as cores atraem a atenção da mente, tornando secundária as expressões e formas. Ao resumir as cores em apenas duas, ou seja, preto e branco, a mente se concentra melhor nas formas e expressões. 
– O que a noite lhe diz para lhe atrair tanto?
– Este é um daqueles casos onde se mira no que viu e acerta o que não viu. Apesar de gostar do escuro desde a infância, e de sempre questionar esta errônea relação entre o escuro e o "mal", foi o final de 2010, após dois anos documentando o sertão, que entendi precisar retratar também a noite. Fui reunindo conhecimento para trilhar o sertão a noite e documentar seus recantos a partir de um compromisso documental. No caminhar da noite, nas veredas silentes, encontrei uma paz incrível. O tempo passou e esta relação foi se fortalecendo. O interesse em estreitar esta relação com a noite no sertão se intensificou de tal modo que passei a ir sozinho. Eu sonhava com isso quando estava em casa. Nos sonhos, caboclos, negros e índios me chamavam para as trilhas. Na busca pela introspecção profunda, a fotografia se tornava secundária. Houve algumas vezes, inclusive, que estava acampando no topo de serras, como a do Cuó, em Campo Grande, e a serra Branca, em São Rafael, que não fiz uma foto sequer. Apenas horas ininterruptas de contemplação. Suspeitei que estava começando algo que já se apresentava com um lado espiritual, lado este que nunca achei que desenvolveria. Só quem está lá, sozinho, ao relento, sentindo o frio e se fortalecendo com os desconfortos, perceberá o que realmente estou tentando descrever. Uma relação íntima com o imaterial. Nessas horas, você não tem nome. Não existe medo. Não se sabe quem é, não tem filhos, emprego, esposa. Nada. Você apenas é. Mas não se engane, não é devaneio, nem amnésia. Nestes breves momentos nunca estive tão lúcido e vivo. Plenitude. Por isso, a foto ou qualquer outra linguagem não deve interromper esta conexão ancestral.
– Existe uma maneira diferente de olhar o mundo?
– Acredito que sim. A forma como você enxerga a realidade ao seu redor depende das informações que você absorveu durante suas experiências. Você só percebe aquilo que está buscando, seja consciente ou inconsciente. O lado consciente vem das experiências concretas, como leituras, vivências, práticas, expectativas. Já o inconsistente advém daquilo que reverbera no seu coração. Desejos profundos que desconhecemos a origem, até brotarem à superfície do pensamento. 
– O jornalismo é prático, a fotografia contemplativa. Ambos são semelhantes por retratar o cotidiano, a história agora, mas só a fotografia tem maior potencial de virar arte. Por quê?
– Em síntese, tudo é imagem. Sejam as palavras escritas ou faladas. A imagem predomina. É comprovado cientificamente através da neurociência que o cérebro armazena informações em imagens. Na linguagem coloquial, signos. A fotografia é mais um destes signos. Acredito que uma fotografia, por ser mais acessível do ponto de vista do reconhecimento neural, exerce esta vantagem. Com exceção dos deficientes visuais, uma imagem fotográfica possui reconhecimento universal. Todavia sua interpretação pode variar conforme a cultura e a experiência de cada um. Mas a forma como ela é reconhecida como transcrição do fato ocorrido, da representação daquilo que pode ser contado, numa única expressão reconhecível, a torna tão poderosa. Inclusive do ponto de vista da arte.
– Há muito você busca uma filosofia própria e isso lhe ajudou a construir uma rotina mais simples e até meio alternativa. O que você descobriu?
– As descobertas e redescobertas nunca cessam. Há pelo menos uma década descobri que muitas histórias que me contaram para encontrar a tal da felicidade são falácias. Erros grosseiros da interpretação do que significa viver. Ideias como sucesso, poder, dinheiro, acúmulo material, são ilusões de um sistema que deseja mantê-lo preso. Esse discurso é antigo e remonta eras que antecederam a Cristo no oriente. Claro que, uma vez vivendo na matéria, precisamos sobreviver. Por isso precisamos de alguns utensílios para facilitar nossas ações. Todavia, viver em função disso é onde reside o erro, na minha opinião. Não sou bastião da verdade, nem desejo ser modelo de coisa alguma. Entretanto, posso exemplificar, de modo simples, que vi e revejo a felicidade nos olhos de muitos sertanejos que documentei, e que vivem com o mínimo necessário. Enquanto alguns outros, senhores com posses e o dito poder, sentem um profundo vazio que é lucido por quem espia pela janela da alma. Hoje, há conceitos como minimalismo, onde se prega a necessidade de se cercar de menos coisas. O ser precisa ser criativo e fugir dessa programação tradicional. Na maior parte é preciso desconstruir para se reconstruir. Rever seus conceitos e onde você deposita suas expectativas e principalmente aquilo que alimenta sua alegria. Há pessoas que para encontrar a tal felicidade precisam comprar coisas novas. Eu prefiro sentir a brisa do vento, ouvir o canto dos pássaros, ouvir o som das águas nos açudes. Subir no alto das serras, olhar para os lajedos. Entrar na mata a noite e ouvir o som da Mãe-da-Lua. Ninguém ainda conseguiu me cobrar um preço monetário por isso. E eles ainda estão lá, todos disponíveis. Temos que refletir sobre isso.
– O que a hiperconectividade faz com as pessoas?
– Sou formado na área de Redes de Computadores, com pós-graduação em Telecomunicações. Vi durante minha formação toda a parte técnica como estas informações trafegam entre os vários dispositivos e meios. Mas em nenhum momento do curso se critica ou levanta esta relevante questão. Li muitos textos do filósofo Pierre Lévy, uma sumidade na área da tecnologia. Ele falava de redes sociais, quando elas ainda não existiam. Não tenho dúvidas dos benefícios que a internet e o acesso à informação podem trazer. Entretanto, por falta de um pensamento crítico, fruto da ausência da filosofia na vida da maioria das pessoas, estas tecnologias criam uma amnésia nos indivíduos. As ditas bolhas começam a ditar quem você é e no que você irá acreditar. As pessoas se perdem no meio de tanta informação e se desconectam de si mesmas. Isso as torna vulneráveis à reprogramação de seu comportamento. Os grandes conglomerados financeiros que se alimentam do mercado adoram pessoas vulneráveis a este tipo de reprogramação. O poder político atualmente vem tirando proveito disso, vide as fakenews. 
– É por isso que a vida dói tanto?
– Creio que a dor vem das expectativas que alimentamos dentro de nós mesmos. Quanto menos projetamos, quanto menos nos iludimos, menor é o sofrimento. Projetamos demais nossa felicidade nos outros. Ela depende única e exclusivamente da nossa mente. Porém, quando me refiro a projeções e expectativas, não quer dizer ausência de planejamento ou objetivos. Ao falhar, temos de rever e tentar corrigir. Ver, rever se vale a pena. Devemos entender também que o sofrimento é parte integrante da vida. Ele é necessário. Faz parte de nossa evolução. Mas, no final, o sofrimento acaba sendo uma ilusão. Pense num sofrimento pelo qual passou. Mesmo que você se esforce para lembrar, ele jamais será sentido da mesma forma. Passou. A vida continua. A essa evolução também chamamos de maturidade.   
– Depois de vivenciar tantas experiências, qual o tamanho do mundo?
– Eu trataria esta questão no plural. Qual o tamanho destes mundos? Porque dentro de cada um de nós, se desejarmos, podemos abrigar vários. E sempre há espaço para outros. Recorro à doutrina espírita, através da ideia da reencarnação, para exemplificar. Somos muitas vidas dentro de um corpo só. O corpo é passagem, finito. O espírito ou consciência, como entidade aglutinadora de experiências, pode abrigar estes vários mundos. Com um pouco de criatividade, pensamento crítico e consciência, estes mundos podem ser infinitos. Afinal de contas, nenhum neurocientista conseguiu dimensionar o tamanho da consciência e muito menos do cosmos.
– O que ainda precisa fazer na vida?
– Tenho apenas 37 anos. Meu filho tem 8. Há muito mais a se ver, perceber e experimentar. Repassar parte disso a ele, como já fazemos. Continuar esta documentação sobre o sertão, onde creio ser o meu principal legado fotográfico. Há várias outras descobertas que preciso fazer e, cada vez mais, percebo que as estradas a serem percorridas levam para dentro do ser. Independente de onde eu esteja fisicamente, sempre posso trilhar os caminhos do autoconhecimento. 

Para conhecer um pouco do trabalho de José Bezerra trazemos duas fotografias suas: 
Amanhecer no Talhado da Onça, em Campo Grande/RN

Pescadores preparando a partida, em Tibau/RN.



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