TUDO É MUITO SIMPLES


Aos 88 anos, a psicóloga Flávia Passalacqua dedica sete horas por dia para ouvir, gratuitamente, qualquer pessoa que bata a sua porta. Apesar disso, acha que isso é apenas um dever de cidadania. Há 14 anos nesta missão, sua busca continua sendo “aprender todos os dias”.

Desconfiei que fosse você, disse ela ao me ver entrar na sala. O tempo passou, mas seu semblante é o mesmo, terna, apesar de firme e profissional. Seu habitus[1] é de elegância francesa e o tom de sua voz de quem compreende o mundo.
Havia telefonado para ela uma semana antes para marcar a entrevista. O toque de chamada era de uma música dessas da moda. Cheguei a pensar que estava ligando errado. Do outro lado, a fala de quem teve o descanso interrompido, apesar de sempre cortês. Falei da entrevista e ela questionou sua necessidade, como quem não tivesse tanto a dizer. Marcou a data como se esperasse alguém para uma consulta e determinou a hora com relógio inglês.
Cheguei ao Hotel Garbos dez minutos antes do compromisso. Há anos ela aluga uma sala no piso superior para atender gratuitamente as pessoas. Antes, atendia de 6h da manhã à 6h da tarde, sem interrupções. Hoje, devido a saúde um pouco fragilizada, reduziu o tempo para sete horas de expediente.
Dessa vez, no entanto, vi que tinha uma atendente, uma novidade para quem sempre fez seu trabalho sozinha. Uma moça simpática sentada em um banco no corredor. Se apresentou e disse que me anunciaria. Esperei minha vez até que um jovem bem vestido saiu da sala com ar de apressado. Um minuto depois eu estava sentado na mesma cadeira que sentei anos atrás para conversas profundas e conflitantes.
Por que esta entrevista? Questionou novamente. Expliquei a ela sobre valor-notícia, mas ela não me pareceu convencida. Parecia esperar algo que supunha eu estar escondendo. Por um instante, achei que estivesse negando a permissão da conversa, até que perguntei se me concederia ainda a entrevista.
– Você já está me entrevistando.
Realmente já estava. Essa percepção do processo humano é o que faz de Flávia Passalacqua uma profissional concorrida. Apesar de atender gratuitamente, os que sofrem de ansiedade ou coisa parecida muitas vezes não conseguem aguentar a espera de uma agenda lotada. No caso dela esperam e aprendem na espera.
Flávia Anita Maria Passalacqua nasceu em São Paulo no dia 6 de setembro de 1931 e foi levada para o Rio de Janeiro aos quatro meses onde viveu por mais de 70 anos. Filha dos italianos Pilad Giacomini, industrial do ramo farmacêutico, e Teresa Giacomini, dona de casa, foi criada em um ambiente conservador e de muita educação formal, tanto que até o terceiro ano científico, estudou no Colégio Notre Dame de Sion, de freiras francesas.
Casou-se com o também italiano Gino Passalacqua, engenheiro agrônomo, com quem teve três filhos: Giancarlo, engenheiro de minas e advogado, Roberto, também advogado e Alfredo, médico infectologista.
Entrou para a faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) aos 34 anos, quando seus dois primeiros filhos (Giancarlo e Roberto) já eram adolescentes, e precisou interromper o curso por dois anos quando Alfredo, o temporão, nasceu. Concluiu a graduação aos 40 e aos 41 montou seu consultório.
– Quem faz curso de psicologia acha que vai resolver seus próprios problemas, mas tem de se preparar para exercer a profissão – lembrou Flávia. Esse pensamento a levou a fazer nove anos de psicanálise individual. – Consegui me formar no momento em que meu analista disse que me mandaria um cliente –, completou.
Trabalhou ainda no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na seleção do concurso para diplomatas no Instituto Rio Branco e como voluntária na Santa Casa de Misericórdia do RJ.
Aos 45 anos ficou viúva e foi seu consultório que assegurou o sustento da família até os filhos se formarem e se encaminhassem na vida. Hoje, Giancarlo mora no EUA, Roberto no Rio de Janeiro e Alfredo Passalacqua em Mossoró, onde, logo que chegou, tornou-se um dos especialistas em sua área mais respeitados e concorridos da cidade.
Foi ele quem instigou Flávia a vir para Mossoró. Em 2001, ela lhe fez uma visita e gostou muito da cidade. Levou jornais e de lá ficava lendo as notícias pelo site do Jornal de Fato. Em 2005, depois de nova insistência de Alfredo, decidiu vir passar um tempo maior e foi ficando, até hoje.
Através de Alfredo passou a visitar, voluntariamente, as enfermarias do Hospital Rafael Fernandes, especialista em doenças infectocontagiosas, para oferecer um apoio aos pacientes com HIV e a seus familiares.
– Comecei a entender que eles precisavam muito de alguém que os vissem, que os ouvissem e com quem pudessem falar. Percebi ali que tinha um trabalho a fazer aqui, disse em entrevista ao psiquiatra e ex-reitor da UERN, Milton Marques de Medeiros, durante programa Mossoró de Todos os Tempos.
O contato com essas pessoas lhe motivou a querer ocupar seu próprio espaço. Ao visitar os pacientes com hanseníase do Rafael Fernandes, descobriu que a chefe de programação desta ala trabalhava no Posto de Atendimento Médicos (PAM) do bairro Bom Jardim. Foi lá com a cara e a coragem e se ofereceu para trabalhar como psicóloga voluntária.
Apesar de enfrentar desconfiança e certa resistência, dois anos depois a porta da sala onde atendia ganhou uma placa que indicava: “Psicologia”.
Observadora dos sentimentos básicos, carregava nas mãos o sonho de atuar com terapia preventiva. Depois de buscar muito, acabou sendo aceita como voluntária no Centro Educacional Aproniano Martins de Oliveira (CEAMO). Lá, desenvolveu um trabalho de ajuda aos professores na compreensão dos processos de interação dos alunos, bem como realizando atendimento individualizado das crianças.
– Uma sede de saber, de querer saber, de ir ao fundo de cada um é esse o meu trabalho. O restante da vida é aprender todos os dias –, diz ela com seu ar de calmaria e o costume de se expressar de olhos fechados, como se confessasse para si algo maior do que as próprias palavras.
Apesar de enfrentar resistência em Mossoró, de ter de provar todas as vezes ser capaz de cumprir os compromissos que assumia, guarda por esta cidade um amor incondicional.
– Mossoró me ensinou a ouvir não e a superar. Quando as portas se fechavam, aprendi a sempre abrir uma janela –, comentou com certo tom de rancor e aceitação. Em seguida, lembrou que foi aqui que aprendeu a dirigir depois dos 70 anos, tornando este simples acontecimento em um feito admirável.
Ainda na entrevista a Milton Marques, Flávia demonstrou não apenas ter compreendido Mossoró, mas também a circunstância existencial do Nordestino.
– O sol de Mossoró é quente, a terra é rude, as pessoas são sinceras e eu aprendi aqui a conviver com a resistência. Me tornei aqui uma pessoa muito mais resistente e muito mais forte.
Forte, provavelmente, ela sempre foi. Seu semblante de fragilidade devido ao corpo franzino e delicadeza na voz é combatido pelo olhar de quem enxerga a alma e tem a capacidade de se tornar espelho. Talvez isso seja o que a torna tão eficiente na tratativa com seus pacientes que não enxergam apenas a psicóloga, mas alguém que viu tanto da vida que parece conhece-los profunda e intimamente, como se fosse uma mãe ou um pai atento.
A humildade é também uma busca de Flávia Passalacqua, mas o empoderamento de ter construído uma vida elogiável, apesar de se esquivar dessas definições, a faz quem é. Vivendo de aposentadoria, nunca cobrou a um paciente. Diz que o dinheiro não pode substituir a gratidão dos que lhe procuram. É provável que a maioria pudesse pagá-la pelas consultas, mas isso realmente não importa para ela.
Quando perguntei se ela publicou ou pretende publicar algo de seu conhecimento, foi ávida na resposta: – Quem sou eu para publicar livro. Ninguém vai ter interesse nenhum naquilo que vou contar. Minhas coisas só interessam a mim. Fico feliz quando consigo ajudar as pessoas a descobrir o que escondem no fundo de suas caixinhas pretas.
E de onde vem essa necessidade de ajudar o outro, algo tão forte que se impõe como missão de vida? A resposta é novamente surpreendente: – De Deus, sem ele não sou nada.
Deste ponto, comecei uma entrevista seguindo um tom de conversa e buscando arrancar dela definições e observações mais gerais ou conclusivas. Meu interesse era deixa-la menos objetiva nas respostas, mas não é de seu perfil ser prolixa, embora em suas palavras contenham mais que o necessário para se entender da vida.
– As pessoas são mesmo heterogêneas ou depois de tanto tempo ouvindo elas é possível criar um padrão de comportamento?
– Não, cada cabeça pra mim é uma nova. Por isso, digo que tenho aula aqui sete horas por dia, de terça a sábado. Podem dizer as mesmas palavras, podem ter o mesmo problema, mas não têm a mesma origem.
– Quem é o outro e quem somos nós?
– O outro é aquele que precisa de ajuda e eu sou aquela que tenta poder ajudar.
– A felicidade é mesmo algo muito importante?
– Quem é que não quer ser feliz? É importante, mas nem sempre a gente consegue alcançar.
– Há 30 anos as pessoas sofriam das mesmas coisas que sofrem hoje?
– Sofrem simplesmente de uma outra maneira, mas sempre são os mesmos problemas. Eles podem dizer as mesmas coisas, as mesmas palavras, mas são pessoas diferentes, têm DNA diferentes, a mãe e o pai são diferentes. Então, são pessoas diferentes. É por isso que é uma profissão extremamente estimulante e eu posso aprender o quanto eu quiser. Quando eles dizem “obrigado” eu digo: “não, quem tem de agradecer sou eu. Você não sabe o quanto eu aprendi com você”.
– O que as pessoas esperam quando vêm lhe ver?
– Querem ficar curados, só que eu não enrolo ninguém. Cura não tem. Tem uma aceitação e um controle de suas paixões, de suas necessidades. Não tem cura, em geral não tem a cura que é ficar livre; ninguém fica livre de ansiedade, todo mundo tem ansiedade, a ansiedade é humana; ninguém fica livre da inveja, a inveja é humana, mas pode ser controlada. Pode ser usada de várias maneiras, para destruir ou para poder você imitar um pouco o outro já que ele teve tanto sucesso. Por que destruir uma coisa boa?
– Depois de ouvir tantas pessoas, quem lhe escuta?
– Eu.
– Como acontece esse processo?
– ... Você sabe que o tempo passa e eu não sinto! É tanta coisa, tanto aprendizado... inclusive, você sabe, que nossa principal regra de conduta é jamais abrir a boca para falar sobre os problemas que são comentados aqui. Jamais! Como se fosse um confessionário. Então, isso tudo eu converso comigo. Você acha que eu vou ter tempo para me cansar ou ficar sem nada para fazer? Não. Minha cabeça não para. Eu acho que é por isso que posso trabalhar tão bem, apesar de minha idade.
– Quando você fala costuma fechar os olhos. É algo que aprendeu na convivência com as freiras ou é uma forma de olhar para si antes de olhar o outro?
– É, talvez seja isso mesmo, porque eu não estou vendo a pessoa, estou vendo o problema dela. O físico não me importa tanto.
– Guardar angústia, dor e medo pode adoecer o corpo?
– Mas, escuta, você é o que? Como é que você pode separar uma coisa da outra? Ela é sua, a vida emocional é sua, então, ela pode sim trazer muita coisa... ela pode ser exposta de uma forma importante, como por exemplo, a parte alérgica, você pode ter convulsões... é tanta coisa...
– Se você pudesse dar um conselho universal, que conselho daria à humanidade?
– Eu tenho a sabedoria de não dar conselhos. O meu trabalho é esse: fazer com que a pessoa saia daqui sabendo ela resolver os seus problemas, e só. No momento de maior angústia, porque isso pode acontecer, minha porta estará sempre aberta, mas sempre do mesmo jeito. Conselhos eu nunca dei e nunca vou dar porque não quero ninguém dependendo de mim. A cabeça minha é minha e eles têm cabeça suficiente para poder ter a vida deles da melhor maneira possível, é para isso que eu trabalho.
– O que as pessoas jovens não conseguem ver da vida?
– (risos) coitadinhos, eles não podem ver da vida a felicidade que é ser jovem e aproveitar melhor isso.
– E você, o que viu da vida?
– Que eu, humildemente, tenho de ser capaz de ajudar as pessoas.
– O que ainda espera ver da vida?
– A mesma coisa até o final. Eu gostaria tanto de morrer sentada aqui...
Depois desta resposta, nada mais poderia perguntar, talvez porque, tenha, naquele instante, aprendido um dos segredos de viver em paz.

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