POETA EM EXPANSÃO



Manoel Cavalcante trouxe do sertão a força que precisava para manter firme a cultura e ajudar no reposicionamento da literatura de cordel no Brasil

Manoel Cavalcante tem uma longa missão para o futuro e um grande passado pela frente. Da nova geração dos cordelistas-declamadores do Brasil, o jovem pauferrense, de 28 anos, já é ídolo de muita gente e um espelho para o espaço reconstruído para este gênero por Antônio Francisco, maior poeta popular do Brasil na atualidade.
Carregado pelo importante trabalho das editoras Comunique e 3M, que têm à frente o mobilizador cultural Rílder Medeiros, Manoel conquistou o Oeste potiguar e desponta em várias partes do Brasil. Ter uma boa editora é fundamental no processo de expansão da arte de qualquer escritor, mas quando este é também um show-man, as portas se abrem muito mais facilmente.
Serelepe, Cavalcante é um provocador. Baixinho e franzino, carrega na cara um jeito de menino adulado. Sua personalidade não está apenas nas sobrancelhas cheias, mas nas atitudes que o carregam pela vida. Está também na cara de moleque ruim que tem sempre uma tirada inteligente. Alguma coisa de João Grilo, tirando a parte ruim desse personagem importante para o cordel. A capacidade poética, o carisma e a inteligência de Manoel são, com certeza, suas marcas mais visíveis.
Filho do moto-taxista e agricultor Edmilson Alves de Souza e da normalista e professora primária Maria Estelita de Souza Castro, tem duas irmãs, o que explica muito. Sendo o único rapazinho da casa, teve muita gente para lhe dar colo e confiança.
Estudou na Escola Estadual Teófilo Rêgo, no Instituto Educacional O mundo do saber e no Educandário Imaculada Conceição. Com muita energia, se tornou atleta de futsal e o esporte pagou o resto de seus estudos até o fim do ensino médio, realizados em escolas privadas com bolsa integral.
Cursou odontologia na UFRN e hoje ganha a vida cuidando do sorriso alheio, quando não no consultório, em suas apresentações sempre disputadas. É que ele tem jeito para a coisa e conquista dos mais atentos aos mais desavisados. Nasceu para isso, como diz o pesquisador Kydelmir Dantas, cuja bênção significa muito.
Solteiro, leva uma vida de sertanejo da cidade. Incorporou os personagens míticos do Nordeste e não dispensa uma sandália de arreata. Faz o tipo matuto sabido e é neste contexto que expõe seu charme de poeta moço.
Em 2007, publicou o primeiro livro: “Um Caçuá de cultura” (Produção independente). Mas percebeu a existência do mundo da poesia através de sua irmã, de quem se apropriou daquele que chama de “seu primeiro poema”.
– Eu fazia a 2ª série, quando a professora pediu para fazermos um poema sobre a Copa do Mundo de 2008. Levei um que minha irmã tinha feito na escola dela, mas demonstrei muita desenvoltura para declamá-lo, daí tomei gosto pela coisa. O pontapé inicial para a publicação foi em 2007, quando eu fazia o 3º ano do ensino médio. O professor Zildembergue Sena (de história) fez uma força tarefa e mobilizou a escola para que eu lançasse meu livro de poesias para apresentar nas feiras de ciência, nos arraiás e nos eventos da escola. Contém dez poemas em versos populares, não tem ISBN, não tem editora, mas foi, talvez, o mais importante dos meus livros. O povo caiu na besteira de gostar e eu percebi que dava pra continuar escrevendo a partir dali.
Seis anos depois, nasceu seu primeiro trabalho de visibilidade: “Pau dos ferros à sombra da oiticica” (Offset - 2013) que lhe rendeu muita atenção, mas também as primeiras decepções no meio. Em 2016, entrou na editora Comunique com “Dorinha, a pequena gigante”, e estourou no ano seguinte com “A casa de minha avó” (Comunique - 2017). No mesmo ano publicou “Tão perto, tão longe” (3M - 2017) e neste ano “O Circo” (3M - 2018) e “Se fala assim no sertão” (3M - 2018).
Sua poesia entra em seus poemas através da nostalgia, geralmente com lembranças próprias, mas de cunho universal. O peso de suas metáforas resgata memórias e reminiscências em seu público, o que torna comum ver crianças e adultos chorando após uma de suas declamações. A beleza do conjunto poético que compõe o menino de sobrancelhas largas e sandálias matutas e sua capacidade de sintetizar a vida elevam Manoel Cavalcante à categoria de grande escritor e enorme promessa literária.
Desenvolvi com Manoel uma afinidade de admirador, pois, apesar do contato, não somos amigos ainda. Meu primeiro encontro pessoal com ele foi em outubro deste ano, durante a 14ª Feira do Livro de Mossoró. Discutimos alguns de seus poemas e de sua reação surgiu a minha simpatia por ele, o que nos levou a outra conversa:
– Seus textos falam sobre você, alguns sobre dores, ressentimentos e a maioria de lembranças vividas ou inventadas. Escrever é também um momento de libertação?
– A poesia me salva. Não é fácil viver nesse mundo doido, cheio de ódio, de polarizações, de conflitos, de insegurança, de desonestidade. A poesia me proporciona a fuga, a liberdade, a salvação. Ela suspende isso tudo, transforma em verso e me dá fôlego.
– Você se considera um escritor infantil ou é o cordel, sua cadência e sua rima que levam a isso?
– Olha, como diria Salizete Freire, nós escrevemos para gente. Eu escrevo poesia. Tendo o cordel como uma de minhas estilísticas predominantes, mas sou, por exemplo, trovador e membro da Academia de Trovas do RN. No entanto, a poesia popular é muito lúdica, cantante, brincante e uma de suas aplicações é na nossa infância, na nossa formação, por isso agora tenho utilizado o cordel voltado para esse público, talvez mais pelo “papel de presente” do que por qualquer outra coisa. Eu tinha um folheto da casa de minha avó, mas um livro, ilustrado, com lápis de cera, é diferente. Ultimamente temos publicado trabalhos ilustrados, com uma edição, um embrulho voltado para as crianças.
– Antônio Francisco, Bráulio Bessa e você são novas referências deste gênero que existe no Brasil desde os tempos de colônia, basicamente com a mesma toada. Chegando a Globo, às escolas e formando novos ídolos, o cordel se reposiciona ou ele apenas se reapresenta?
– Na verdade há um vazio conceitual muito grande com respeito ao cordel. Hoje acredito que ele se reposicione, esteja ganhando conceito e força sobre alguns patamares. Devemos nos aprofundar mais sobre, conhecer um pouco mais para divulgarmos nossas impressões sobre o assunto. Creio que o cordel tenha crescido bastante nos últimos anos, talvez por ser a única forma de poesia brasileira, genuinamente nordestina, o cordel imprime a cara e a alma de nosso povo.
– Contar história é uma coisa, interpretá-la é outra completamente diferente. Todo cordelista deveria ser um bom declamador para dar voz à sua arte ou este é apenas um detalhe artístico particular?
– Essa é uma ótima pergunta. A arte de declamar é uma arte distinta da arte de escrever cordel. Muitos cordelistas não declamam, muitos declamadores não escrevem. Eu considero declamar, algo de fundamental importância na obra de um cordelista. Dar voz a um verso é muito diferente de dar apenas letras, algarismos arábicos, eu gostaria que todos os cordéis fossem declamados. Conheço pesquisador e gente do meio que defende que o cordel não seja declamado e sim lido, somente lido. Defendo que ele pode ser lido, cantado, declamado, encenado, gritado e o que precisarem fazer com ele.
– Bráulio Tavares é um cordelista estudioso do cordel. Ele também tem deixado contribuições importantes. O quanto você se interessa pela teoria deste gênero?
– Bráulio Tavares é uma de nossas referências. Considero ele, Aderaldo Luciano e Marco Haurélio, as nossas maiores referências teóricas. Li livros teóricos dos três, ministro palestra, aula-espetáculo, oficina e variadas atividades referentes ao cordel e à literatura popular. Acho que posso dizer que sou um embrião de um estudioso da área. Gosto muito de estudar o cordel e muito me interesso por obras sobre essa área. Assim como me sinto muito à vontade para ministrar atividades sobre.
– Leandro Gomes de Barros, a maior referência do cordel, recontava, a partir de seus versos, grandes histórias que dizem ser de domínio público, algumas até referenciadas nos contos das mil e uma noites. São odisseias encantadas que nos abriu portas e janelas para o mundo literário. Você tem proposta de escrever uma história nestes moldes do antigo cordel?
– O pai do cordel brasileiro, que apresentou, com mais robustez, o cordel ao mundo. Olhe que eu não gosto de personificar nem elevar ninguém, mas é simplesmente um fato. Eu já até escrevi história semelhante a odisseias e verdadeiras epopeias em cordel. O livro "Pau dos Ferros à sombra da oiticica" é uma obra com quase 150 páginas, mas é um texto único, em literatura de cordel, que conta uma narrativa, sem parar para tomar o goto, dos anos de 1717 a 2012, todo um panorama sobre a história de minha terra natal. Tenho também um cordel chamado "José, um pastor de sonhos" que também segue essa risca do cordel antigo, é uma história bíblica em cordel, aquela mesma que foi encenada em novela já. A história de José do Egito. Eu já a escrevi em cordel.
– Você é ainda muito jovem. Que medo você tem diante desta atenção toda que se criou em seu entorno?
– Assim, eu acho muito importante que eu seja jovem. Isso encoraja, motiva outras pessoas, outros jovens, crianças, a caminharem pelos caminhos da arte, do cordel, da leitura, da literatura. Quebra mitos, paradigmas. Mas eu não estou só nessa... Temos outros valores no cordel potiguar como Jadson Lima, Robson Renato, Edcarlos Medeiros, Rariosvaldo Oliveira e até poetisas e poetas mirins, que são muitos também... Temos plantado sementes e temos visto alguns frutos já, isso é muito gratificante. Queríamos muito mais atenção do que temos para espalhar nossa arte e nossa literatura por aí... muito mais... Eu tenho medo de não ter atenção em torno do cordel, da literatura popular, é muito bombardeio tecnológico, é muita concorrência desleal, o cordel merece mais atenção.
Com esta resposta, me dei conta de que a humildade é também um fator preponderante para a construção de um artista autônomo. Repartir o pão foi uma lição que aprendemos há mais de dois mil anos. Ninguém caminha sozinho no mundo e toda vez que um artista leva consigo a esperança de sua arte e planta sementes dela, ele torna o mundo maior e mais suportável. Manoel Cavalcante é também um menino que anda com uma enxada no ombro e um saco de sementes nas mãos.

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