O QUE NUNCA CONTEI SOBRE NOLL

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Foto: André Reis/Divulgação

Em agosto de 2016, encontrei com o escritor gaúcho João Gilberto Noll, um dos 100 autores essenciais da literatura brasileira. Desde então, nunca publiquei o que conversamos, até agora.

Não me lembro onde estava quando soube da morte de Noll. Não éramos amigos, distante isso. Nem sei se sabia de minha existência, a não ser nos dois encontros fortuitos e desiguais que tivemos. Ele a estrela das noites, eu apenas um leitor.
A primeira vez que o vi foi por acaso no Festival Literário de Pipa (Flipipa) em 2010. Não fui ao seu encontro, queria mesmo um segundo autógrafo de João Ubaldo Ribeiro, coisa que já tinha conseguido em abril por ocasião durante o I Encontro de Escritores de Língua Portuguesa em Natal, realizado no Teatro Alberto Maranhão.
O ano de 2010 foi agitado para a literatura na região metropolitana da capital. Em Pipa, inclusive, cumprimentei o poeta Geraldo Carneiro, cujo livro “Balada do Impostor” dá título à meus espaços neste jornal. E entre estes nomes avistados, estava lá aquele senhor calado, alto demais para a estatura dos que lhe aguardavam, óculos de grau com armação escura. Tinha uma cara longa e redonda, cabelos ralos, aspecto branco de gente de grandes linhagens europeias.
João Gilberto Noll nasceu em 1946 em Porto Alegre (RS) e faleceu nesta mesma cidade no dia 28 de março de 2017, um ano e sete meses após nosso último encontro. Quando o cumprimentei em Pipa, carregava apenas o livro Hotel Atlântico (edição de 2004) para receber um autógrafo, mas ele já havia publicado, àquela altura, 18 dos seus 19 livros. O último, Solidão Continental, foi publicado em 2012. Em 2010, ele havia publicado Anjo das Ondas, mas eu não sabia.
Quem mediou sua palestra foi a professora da UFRN Ilza Matias de Sousa. Tinha muita paixão pelo autor. Mas a grande surpresa foi quando Noll começou a falar. Estranho. Uma voz cantada de homilia, um cansaço natural angustiante. As pessoas riram dele, depois se fixaram, sobretudo quando pode ler trechos de algumas de suas obras. A violência da narrativa, a sexualidade, a perfeição encadeada dos argumentos, voos psicologizantes, fluxos linguísticos vertiginosos, prolífico.
Não foi à toa todo encanto. Até aquele ano, Noll já havia ganho cinco vezes o prêmio Jabuti, o Portugal Telecom e a desejada Bolsa Guggenheim para Artes Criativas, América Latina e Caribe. Seu livro Harmada havia sido classificado, em 2007, pela revista Bravo como um dos 100 livros essenciais da literatura brasileira. Eu e talvez a maioria naquele auditório da Flipipa é que não tínhamos conhecimento.
Mas, apesar ser tudo isso, Noll não foi tão prestigiado em sua partida. Pelo menos segundo o poeta e cronista Fabrício Carpinejar, também Gaúcho, que em artigo disse não ter mais de 50 pessoas velando seu corpo. Ele também reclamou a ausência de políticos do RS. Por isso, acusa o Estado de ter “matado Noll”.
O reencontrei em 17 de agosto de 2016, na Feira do Livro de Mossoró. Aspecto sempre frágil. Agora já o conhecia, mas a esmagadora maioria das pessoas do Expocenter da Ufersa não. A professora Leila Maria Araújo Tabosa, da UERN, estava tão emocionada com a oportunidade de mediar sua mesa, que parecia nervosa. No palco principal, o autor falou para alguns poucos desatentos e eu fui talvez o único que lhe fiz uma pergunta.
Antes, porém, nos encontramos na sala de espera. Estava sozinho. Entreguei meus dois livros de poesia e pedi que autografasse cinco de seus romances para mim. Atencioso agradeceu os livros recebidos e me dedicou seus livros. Depois conversamos por oito minutos e dezenove segundos. Ele no mesmo tom monástico. Eu, como todo jornalista, comecei perguntando sobre as novidades.
– Qual projeto está envolvido neste momento?
– Neste momento estou envolvido com a escrita de um romance. Um romance lento que está sendo feito lentamente, não é para este ano, talvez não seja nem para o próximo. Mas é a história de um homem maduro. Eu não gosto muito assim de antecipar do que se tratar realmente o livro em que estou metido no processo de escrita. Eu gosto de guardá-lo. Não é o momento de eu realmente expressar o leitor daquilo que está sendo gestado.
– Seu processo de escrita é mesmo lento. Seu primeiro romance nasceu depois dos 30 anos e você o escreveu com as janelas fechadas. O que acontece neste seu mundo?
– Realmente o processo de escrita é vital, quer dizer, o que move a minha narrativa é o ato de escrita e não realmente algum projeto antecipado que eu tenha. É naquele momento em que eu estou no ato da escrita que as coisas se fazem, que a narrativa anda. Eu nunca sei como o romance vai acabar.
– O que é oposto de escritores como Saramago que fazia todo um esquema...
– Isso! É o oposto de Saramago, de Érico Veríssimo, também, que fazia até os desenhos de seus personagens. Meus personagens não têm face.
– Quando jovem você tocava piano. Até onde a música influencia no seu processo de criação? Você disse que transferiu o gosto pela música para a literatura porque não gostava de se apresentar. Onde está a música em suas obras?
– Olha, eu acho que realmente a música está presente na minha literatura. Eu faço uma prosa poética e a poesia é realmente a música da literatura, onde o ritmo é muito importante, o som das palavras é muito importante, a materialidade da palavra é muito importante, seu som, seu ritmo. Realmente, eu acho que estou fazendo um pouco de música quando escrevo, não tenho dúvida disso porque eu vou realmente para o computador tão despido de qualquer programação, assim como eu penso que o músico deve ir para a sua criação musical; acho que ele não tem algo pré-determinado, quer dizer, no momento da feitura que as coisas se esclarecem.
– E como entra o jornalismo neste processo?
– Minha experiência como jornalista foi importante para ancorar um pouco minha literatura, na realidade, porque senão, realmente, eu não estaria fazendo prosa, estaria fazendo poesia, onde eu imagino – como eu estava dizendo – em que a música; a poesia é o lugar em que a música está tão presente. Quando falo em música, falo na música instrumental, não realmente na letra, estou pensando na música mesmo pura, e o jornalismo me deu um pouco de realidade, me levou para prosa, um certo realismo para o qual eu não tenho vocação.
– Peço permissão para discordar, pois seus romances têm uma força realística muito forte e seus personagens, embora se pareçam muito, aparentemente, estão querendo dizer algo muito forte da realidade. Talvez não da realidade dos fatos, mas da realidade que brota de dentro de cada um, essa coisa psicológica...
– Não discordo, pois eu disse que realmente foi muito importante para mim a prática jornalística porque me deu essa vocação, quer dizer, ajudou a me vocacionar para a realidade. Foi o jornalismo que me deu isso, porque senão eu estaria flutuando, eu não estaria escrevendo. Quer dizer que, neste sentido, a literatura é para mim matéria de salvação, matéria de vida; literatura é salvação. Eu sem ela estaria flutuando.
– Além de seu nome nesta edição da Feira do Livro de Mossoró, teremos aqui a presença do escritor mossoroense João Almino [Se apresentou no dia seguinte]. O que você pensa sobre ele?
– João Almino é um escritor muito especial, muito poderoso. O livro dele que eu prefiro é aquele sobre Brasília. Realmente é o que faz dele ser um grande escritor. É diferente dele próprio aquele livro, isso que eu acho mais impressionante. Ele se transfigurou naquelas páginas... Pois é, eu não estava lembrando que João Almino é de Mossoró, fico feliz em saber disso. Mais um motivo para eu gostar da cidade.
Depois desta última pergunta, a professora Leila o chamou para o palco. Ao final da fala, ele deu alguns autógrafos e fez algumas fotos. Pousei de seu lado, ele sentado, parecendo abatido. Eu em pé com admiração. Assim acabou nosso último encontro.

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