O HOMEM QUE NÃO GOSTA DE POESIA

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Foto: JP Rodruigues

Sistemático, José Almeida Júnior consegue focar e conquistar seus objetivos sem distrações ou inconvenientes. Pensa menos e age mais e foi isso o que, provavelmente, determinou o seu sucesso e o tornou um dos escritores revelações no Brasil em 2018.


Ele chegou vinte minutos depois da hora combinada. Mandou mensagem em duas redes sociais e ficou no carro esperando que eu abrisse a porta. Apesar das indicações do endereço, não parecia seguro de estar na casa certa e achou melhor esperar. Quando apareci na porta, abriu aquele sorriso que me parece ser uma de suas marcas. Aliás, tem uma gargalhada alta de gente boa. Olhando para ele, pessoalmente pela primeira vez, não vi muito além de um menino bem criado, daqueles que olham com a consciência de seu lugar no mundo. Ainda não incorporou a figura mítica do escritor, pois não exibe um ar metido, e está longe de abandonar as raízes culturais de sua cidade e sua gente. Fácil de perceber isso na forma do cumprimento, no sotaque e tom da voz.
– Meu cunhado mora naquela casa – apontou com o dedo para o meu vizinho de condomínio. – Passei o natal lá – completou como quem me lembra que o mundo ainda é pequeno, embora sua trajetória tenha dado uma guinada no último ano.
Atravessamos a casa enquanto lhe apresentava os outros viventes. Clarice, minha mais nova, Regiane, minha esposa e o poeta e escritor Raimundo Leontino Filho. O convidei para este encontro como forma de atenção a José Almeida, mas também porque foi Leontino quem me apresentou a proposta de biografismo de Sérgio Vilas Boas. Como amigo de longas datas, orientador literário e meu poeta preferido, sua presença me foi muito salutar neste momento.
Servimos o café com tapioca e o bolo de banana, especialidade de Regiane, enquanto jogávamos conversa fora. Leontino debulhando com sua naturalidade cearense seu conhecimento sobre literatura, os novos e já conhecidos autores de todas as partes do Brasil e nós na tentativa de acompanhá-lo, anotando o que era possível e mais interessante.
Soube da existência de José Almeida quando divulgaram os vencedores do Sesc de Literatura de 2017 e ele só soube de mim quando passei a segui-lo nas redes sociais e torcer por seu sucesso. Perdi seus lançamentos em Mossoró e Natal, mas recebi meu exemplar autografado em casa. Escrevi duas linhas sobre o livro “Última Hora”, acredito que minha melhor leitura em 2018, e nada além. Nosso encontro na minha casa foi algo ainda gelado que precisava da maturação da conversa fora para esquentar.
José Almeida Júnior nasceu em Mossoró no dia 03 de março de 1983. Filho de José Almeida Filho (comerciante aposentado) e Dione Soares de Almeida (aposentada) é o único filho homem da casa, assim como o único cujo nome não começa com a letra “k”: Kaliane, Katyane e Keliane são suas irmãs. Em família de comerciante, tudo é ordenado. Kaliane e Keliane são comerciantes, Katyane, com “y” (dentista) e José Almeida (advogado) são profissionais liberais. Uma coincidência sem qualquer relevância comprobatória, ou até mesmo para esta história, mas que enfeita o texto para não ficar tão seco.
Claro que isso é uma provocação a ele que confessou, mais de uma vez, que não gosta de poesia e muito menos de texto biográficos com floreios. Certamente detestará este aqui, mas não sofrerei desta culpa, afinal ele é que é o bom romancista. Apesar de que, ainda muito jovem e recém-chegado na literatura, sua trajetória ainda é como seu texto: objetiva e boa de costurar.
A impressão é que ele sempre soube o que queria do mundo e planejou tudo com seu conhecimento reprimido para os negócios, desde quando estudou no Diocesano e passou pelo GEO, até chegar na UERN onde cursou Direito.
– Fui fazer direito por uma questão de oportunidade profissional, porque era meio caminho andado para ter sucesso. Na época, meu pai estava ruim nos negócios e como a gente viveu nesses altos e baixos do comércio, abrimos e fechamos vários negócios, eu queria ter uma estabilidade. Queria entrar no serviço público para ter a garantia de um salário todo mês –, confessou seu plano perfeito.
Em 2004, ainda na faculdade de Direito, foi aprovado no concurso da Justiça do Trabalho como técnico judiciário. Em 2007, de diploma na mão, mudou-se para Brasília após passar em novo concurso, dessa vez para a Defensoria Pública do Distrito Federal. Vive lá desde então com sua esposa Vanessa e seus dois filhos Arthur, 6, e Davi, 2. Entretanto, faltava ainda uma coisa.
– Eu queria ser escritor quando estudava o segundo grau. Gostava muito dos regionalistas Graciliano Ramos e José Lins do Rego e dessa coisa do Sertão. Eu queria escrever sobre alguma coisa relacionada a Mossoró, do ciclo do algodão, mas acabou que meus livros foram urbanos e centrais em termos de Brasil.
Quando submeteu o manuscrito do “Última Hora” ao concurso Sesc de Literatura, um dos mais concorridos do País, já tinha um primeiro romance na gaveta. “O homem que odiava Machado de Assis”, embora tenha vindo primeiro, está no prelo e será seu segundo romance. Editado pela Faro Editorial, deve ser lançado próximo a data de aniversário de nascimento de Machado, 21 de junho.
Dono de uma escrita frenética, realmente não perde tempo com metáforas e poesia em seus textos. Ele conta uma história e conta bem, encadeando ficção com uma suposta realidade já publicada. É o “romance histórico” um subgênero do romance situado, segundo György Lukács, no romance social inglês do século 18. É uma proposta que caminha pelos esquemas biográficos, mas se dissipa na liberdade criativa que não exige rigidez na exatidão acadêmica dos fatos.
O método de José Almeida é simples, mas é preciso ter o seu foco e determinação para fazê-lo funcionar bem. Ele define o período histórico, pensa na trama ficcional e passa a fazer as leituras, organizando os acontecimentos em uma planilha, para encaixar o personagem. A grande questão é a construção desse sujeito personagem que surge com enorme profundidade, algo que só é possível graças ao sujeito narrador que, por muitas vezes, é também o autor da ideia pretendida.
Interessante é que ele não se esconde em teorias para revelar sua verve. Tudo aconteceu naturalmente e talvez aí é onde esteja a cereja do confeitado.
– A literatura para mim é experiência de leitura (de romances históricos), tanto que é a forma como eu escrevo, porque só depois fui estudar teoria literária, do romance histórico e aí eu vi que era uma vertente considerada moderna para a teoria literária; é onde se mexe com os fatos históricos, onde se escreve a ficção como prioridade independentemente do que acontece com a história real, pois a prioridade tem de ser a ficção e não a história. Desde o primeiro livro, minha vertente foi essa, mas porque os livros que eu lia eram muito disso. A literatura foi acontecendo a partir da leitura.
Além de José Lins e Graciliano, dois nomes se repetiram muito em sua fala: Mário Vargas Llosa e Philip Roth, este último foi um dos que lhe ajudaram a construir a psicologia de Marcos, o personagem central de “Última Hora”, a partir da leitura do livro “Casei com um comunista”. Depois de vencer o Sesc, a literatura lhe chegou camarada e as portas que se abriram lhe permitem boa expectativa para o segundo livro.
– Hoje a literatura lhe sorri ou lhe assusta mais? – perguntei.
– Me traz muitas alegrias porque descobri que é a coisa que mais gosto de fazer. Cuido dos meus livros como se fossem meus filhos. Quando alguém reclama do livro dói, embora eu não rebata, mas é uma coisa que dói.
– O que é o mercado editorial em tempos de virtualidade?
– Difícil, porque o escritor cada vez mais tem de ir ao leitor porque tem muita gente escrevendo. Embora tenha muita gente lendo também, é muito difícil você encontrar seu espaço, fazer com que alguém passe uma semana, quinze dias com seu livro tendo tantas oportunidades de entretenimento: Netflix, rede social. Eu mesmo, atualmente, tenho colocado o celular em modo avião para resistir à tentação porque isso aqui (mostra o celular) virou um novo cigarro.
– E o Brasil, o que era e o que é para você depois que escreveu o Última Hora?
– O Brasil mudou muito em pouco tempo. Acho que a gente tá vivendo uma época que é fruto da desilusão dos anos de esquerda, às vezes muito por conta das esquerdas, que fizeram bons governos, mas pecaram em muitos pontos e agora estão vivendo um período de ressaca. Agora, o Brasil foi para outro extremo, mas acredito que em pouco tempo as luzes vão voltando aos poucos, porque (com essa coisa de extremistas, fascistas, preconceituosos) as pessoas não estão falando de modo racional....
– O que lhe parece o que vivemos hoje?
– É uma coisa muito nova, porque a história não se repete da mesma forma. Ela dá voltas, mas sempre com componentes diferentes. Hoje se tem tecnologia de difusão de informação, de fake News, que existiam antigamente, na Ditatura dos anos 60, dos anos 30 e 40, mas é muito mais veloz hoje. Eu vejo alguns paralelos, esse discurso de medo, de ameaça comunista que é um discurso completamente anacrônico, um discurso dos anos 50, 60, dos anos 30, uma ameaça comunista que não existe. Então, assim, eu vejo repetição do passado, mas com uma vestimenta nova.
– O que Olavo de Carvalho (que você disse estar lendo) e o conservadorismo têm lhe ensinado sobre essas circunstâncias e mudanças de cenário no Brasil?
– Acho que esse segmento da extrema direita conseguiu se reorganizar de uma maneira muito bem feita, depois de muito tempo fora do poder. É uma forma de difusão de informações, de reescrita da história, então, assim, está vindo em um pacote completo. É uma mistura de fundamentalismo religioso com falácia filosófica e uma pitada de fascismo. Esse é o caldeirão que o Brasil vive hoje. Estou lendo Olavo de Carvalho agora e acho que ele é subestimado. É uma pessoa que tem essa capa de arrogância, meio de maluco, mas é muito inteligente. Tudo que fala é muito bem pensado, muito bem organizado. Encontro em Olavo de Carvalho, nessas leituras que tenho feito dele, um fundamento teórico de todas essas bobagens que estão falando por aí.
– Quanto do momento atual você já tinha escrito no Última Hora, dadas as semelhanças dos acontecimentos históricos?
– No momento em que eu estava escrevendo entre o atentado da Rua Toneleiro (ocasião em que Carlos Lacerda teria sofrido um atentado à bala) e o suicídio de Getúlio Vargas. Escrevi esse período aí mais ou menos no momento em que estava acontecendo o processo (impeachment) da Dilma (Rousseff). Então, assim, eu estava lendo os anais da Câmara dos Deputados e lendo os jornais da época e via muita coisa parecida: a forma como estava sendo conduzido (o processo), um falso moralismo, essa coisa de dizer que o governo era um mar de lama e depois a mesma turma que estava entranhada no mar de lama se juntar para dar suporte à turma que está assumindo. Isso aconteceu também na crise de Getúlio Vargas, o vice dele era Café Filho que estava trabalhando, assim como Michel Temer, para derrubar o presidente para assumir o poder. Muitos que participavam do governo Vargas, inclusive os militares, estavam também por trás da conspiração.
– Sua narrativa é um turbilhão que deixa o leitor fixado. O que lhe ajudou nesta construção estilística e narrativa?
– Talvez tenha sido uma consequência, ainda que indireta, de cinema. Eu estudei um pouco de roteiro de cinema, roteiro de séries, talvez tenha tido um pouco dessa influência indiretamente. Minha prosa é seca porque eu não tenho uma veia poética. Qualquer coisa que saísse ali seria muito artificial. Certamente tive uma influência de Graciliano Ramos que também não gostava muito de metáforas, ele era muito seco. Inclusive, não sei se você sabe dessa história, ele reprovou o “Sagarana”, quando Guimarães (Rosa) era ainda desconhecido. Ele deu o prêmio para outra pessoa porque não gostava... achou bom, mas achou também muito cheio de lirismo.
– Fazendo um julgamento prévio, me parece que Pedro Junqueira, personagem de seu próximo romance, “O homem que odiava Machado de Assis”, enfrentará dramas semelhantes ao de Marcos, personagem condutor do “Última Hora”, considerando a vida, as consequências e a psicologia. Os dois são parecidos?
– Acho que sim. Acho que o “Última Hora” tem mais subtramas e enredos menores do que “O homem que odiava Machado de Assis”. Acho que esse será lido de maneira mais rápida do que o “Última Hora”. O drama principal do Pedro Junqueira é a relação dele com Machado de Assis e a esposa (de Machado). Tem questões políticas também, que eu sempre gosto de envolver. No caso de Pedro, ele vai estar envolvido na aprovação da Lei do Ventre Livre, então, assim, vai ter um pouco dessa questão política também, mas sempre de uma maneira bem acessória.
– Conhecemos muito sobre Getúlio Vargas e Carlos Lacerda no “Última Hora”. Teremos a mesma perspectiva sobre Machado de Assis em seu próximo romance?
– Acho que sim porque a trajetória de meu personagem de ficção corre paralela com a de Machado de Assis. Eles vivem juntos no Morro do Livramento, depois se reencontram na Corte, quando (Pedro) retorna ao Rio de Janeiro. Acompanhei um pouco da trajetória de Machado de Assis através do meu personagem de ficção. Por exemplo, quando eles eram adolescentes, Machado fez uma crônica da inauguração da iluminação pública do Rio de Janeiro, que estava toda pronta, mas o mecanismo falhou e um bêbado ficou gritando: “o gás virou lamparina!”. Então peguei esses fatos pitorescos para criar uma ficção em cima disso. Então, pego um pouco da trajetória de Machado de Assis através de meu personagem, inclusive as intrigas de Machado de Assis, porque ele foi consagrado muito cedo, apesar de enfrentar a resistência por ser mulato, mas ele foi acolhido muito cedo pelos intelectuais do Rio de Janeiro, fez muitas amizades, inclusive com José de Alencar...
– O que Marcos e Pedro, Getúlio e Machado de Assis lhe contaram sobre a vida e o que você pode nos contar sobre o que percebeu?
– Em Marcos essas contradições humanas, este pêndulo de estar de um lado para o outro, acho que isso é muito humano e eu tentei trazer isso para Marcos e acaba que reflete também sobre uma questão interna, pessoal, essa coisa de querer ser uma pessoa de esquerda, mais socialista, menos apegada a coisas materiais em um mundo capitalista. Então, Marcos traz um pouco disso. Coisas que eu tento mudar um pouco em mim. O Pedro... o Pedro não me recordo... No geral eles são cheios de contradições.
– O que você espera da vida e da literatura?
– A literatura é hoje uma das coisas mais importantes da minha vida porque ela faz com que as pessoas se coloquem no lugar do outro, viva várias vidas; faz com que o leitor esteja em situações e períodos que ele nunca viveria. Espero hoje liberdade de escrever, liberdade de expressão. Eu tenho medo da censura religiosa, fundamentalista, isso é uma coisa que me assusta.
Ainda perguntei sobre sua experiência com o Youtube, mas aí a conversa já estava se esticando demais e, embora eu seja da poesia e goste de alinhavar as trajetórias, chega uma hora que é preciso parar porque, mesmo um texto floreado passa por um enxugamento de pano seco. Ainda assim, já havia escurecido quando José Almeida Júnior se despediu de nossa casa prometendo voltar.

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