NINGUÉM CHEGA AOS 54 IMPUNEMENTE

Foto: Pacífico Medeiros
Ator, figurinista, cenógrafo e diretor de teatro, Marcos Leonardo é aquele irônico perfeccionista que se classifica como “inconsequente”. Seus muitos anos de experiências lhe trouxeram até aqui, mas depois de dirigir com excelência os três mais importantes espetáculos públicos do RN, não há dúvida que ele é o artista de maior destaque em 2018.

Nos encontramos no teatro Dix-Huit Rosado. Ele já me esperava há pelo menos dez minutos, bem sentado de pernas cruzadas, calça jeans e uma camisa marrom escura de botões em tom mais ameno. Decidimos caminhar até o Cafezal, sob a sala de exposições Joseph Boulier. Enquanto Jorge organizava o bar, descemos uma mesa e duas cadeiras, acendemos um cigarro e começamos a conversar amenidades.
Não foi nosso primeiro encontro. Isso aconteceu há muito anos, nem me lembro quando. Mais de dez, com certeza. Vim a Mossoró fazer um teste na TV Mossoró e o conheci por indicação de amigos. Tomamos algumas cervejas e falamos sobre arte. Depois, ele foi a um festival de viola que fiz em Apodi e nunca mais nos desligamos.
Geminianos, temos medos em comum. Ele do dia 13 de junho e eu do dia 17. Colocamos culpa de tudo no signo que, coitado, nem deve existir. O vejo de duas formas: irônico e engraçado nos bate-papos informais e compenetrado e multiprofissional nos palcos, não importa o que esteja fazendo. A melhor interpretação de Rodolfo Fernandes, o heróis do Chuva de Bala no País de Mossoró, é dele e isso é unanimidade.
Em 2018, foi convidado pela Prefeitura e Diocese para montar e dirigir os três principais espetáculos da cidade: Chuva de Bala no País de Mossoró (em junho), Auto da Liberdade (em setembro) e Oratório de Santa Luzia (dezembro), conquistando definitivamente o respeito, a admiração e o aplauso de seus pares e dos espectadores.
Marcos Antônio Leonardo de Paula nasceu em 1964 em sua casa, na rua Joaquim Nabuco, aqui mesmo em Mossoró. Filho do meio, de oito nascidos, do lanterneiro Geraldo de Paula Rocha (falecido) e da merendeira Maria Carlos Nogueira Rocha, estudou nas escolas estaduais Padre Dehon, Duarte Filho e Abel Coelho. Ainda jovem mudou-se para Macaé (RJ), onde viveu por quase 25 anos. Lá, cursou o ensino médio na Escola Luiz Reid e fez curso de teatro na Escola Martins Pena.
Começou no teatro ainda menino. Trabalhava como cartazista do supermercado Pague Menos quando foi descoberto pelo professor, poeta e ator Aécio Cândido que o levou para interpretar a voz de um boneco no Circo Alegria do Povo, do grupo Terra de Teatro. O seu talento o levou a virar o manipulador do boneco e depois a se tornar o próprio boneco. – Estreei no mesmo dia de Tony Silva –, lembra.
– Aécio percebeu que eu tinha jeito para o desenho e perguntou se sabia fazer papel machê. Não sabia, mas aprendi rápido e passei a contribuir com o figurino –, conta. Neste momento, percebeu que sua primeira habilidade artística, as artes plásticas (pintou por mais de 15 anos), começava a fazer sentido e lhe dar retorno e reconhecimento.
Em Mossoró, além do Circo do Povo, fez “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, e “Poemas Hemorrágicos”, de Aécio Cândido, depois foi para o Rio de Janeiro. Em Macaé, fez carnaval durante muito tempo e uma ponta no “O Bem Amado”, da Rede Globo, mas me fez jurar que eu não citaria isso. Jurei de dedos cruzados. Fez também “Lucrécia”, interpretando César Bórgia, e “Palhaços”, o espetáculo tragicômico de Timochenco Wehbi. Tem nestes dois trabalhos suas passagens mais marcantes pelo teatro, mas só chegou a esta conclusão depois de muita pressão. Se diz com ego diminuto e afirma não sentir saudade de nada.
– Onde as pessoas procuram criar obras de arte, eu pretendo mostrar o meu espírito – cita com perfeição a célebre frase de Antonin Artaud para justificar sua falta de apego. Discípulo de Artaud e Jean Genet, carrega no peito gratidões bonitas por amigos próximos. A amizade com o figurinista e diretor João Marcelino, por quem nutre grande respeito e admiração, e a relação que teve com Antônio Abujamra, que lhe deixou escrito um elogio invejável, marcam um pouco mais de sua personalidade de afeto e humildade, embora não se considere humilde. Nem poderia, afinal, é um sujeito que dirige, faz figurino e cenário em um mesmo espetáculo.
– Eu sou inconsequente. Você me joga um desafio e eu vou. Comecei a fazer carnaval aos 21 anos de idade, não era para isso ter acontecido, era para ter esperado chegar aos 30. Mas se eu não tivesse começado, levado porradas, não poderia dizer se sei ou não sei. O teatro que faço hoje é uma herança das artes plásticas, dos anos que trabalhei com moda, das vitrines e do carnaval.
A despeito disso, quando perguntado sobre o sucesso dos espetáculos deste ano, só responde com uma frase – Graças a Deus! –, como se tudo tivesse sido apenas um trabalho como qualquer outro e não envolvido a participação de centenas de atores e a emoção de milhares de espectadores famintos por arte de qualidade.
– Eu me subestimo o tempo todo. Nunca vou ser um profissional e digo isso para mim porque é uma forma de me proteger. Eu gosto de ser amador, de ser moleque.
Um moleque atento, embora com cara de serelepe. Marquinhos, como chamamos os que forçam uma intimidade maior, deve mesmo ter sido inconsequente e vivido como um sujeito buliçoso e atrevido. E mesmo agora, de férias, não se aquieta, ao contrário, vai mexer com a arte mais pura ao dedicar tempo na releitura de Grande Sertão: Veredas. – Eu amo Guimarães Rosa, abro o livro em qualquer página e sigo lendo sem perder nada –. Foi sua última frase antes de eu ligar o gravador e fazer a primeira pergunta:
– Por que o teatro continua tão forte apesar da tevê, internet e o Streaming?
– Porque o teatro é a base e quando você é base você não pode perde-la. É o teatro que dá origem à tevê, ao cinema; tudo começa no teatro. Eles até brincam na tevê fazendo exercício de teatro. A tevê quer ser naturalista, tenta ser até onde quer, quando vê que isso não funciona, faz um drama, então rebusca o teatro...
– O teatro exige um desprendimento da alma e do corpo, isso liberta ou causa certo aprisionamento do indivíduo além do palco?
– Liberta pra caramba! Se eu tiver medo de ser feio, não vou me meter com o teatro, se tiver medo de ser bonzinho, não me meto com o teatro, se tiver medo de ser carrasco, não me meto com o teatro. No teatro você tem de ser livre dessas presas, dessas algemas todas. Você tem de ser livre, e como você é livre? Não tendo medo.
– A nudez é um artifício comum ao teatro, muito mais do que em outras artes. Faz parte deste desprendimento que questionei há pouco. Mas esta nudez ainda incomoda parte do público, como também grande parcela de uma sociedade tradicionalista. Como você observa estes fenômenos?
– Criatura, isso é falso moralismo cristão. Não tem como. Por incrível que pareça, o teatro se fortalece na Igreja. Enquanto o teatro foi útil à fé, ele foi usado, depois escanteado. Ironicamente, surge depois disso os mimes e a commedia dell'arte. Quanto à nudez, o ser humano precisa não ter problema com seu corpo. Qual o problema com o corpo? Não gosto da nudez pela nudez, mas um corpo nu é sempre mais bonito que um corpo vestido. Não tenho nenhum problema de ver uma senhora gorda pelada, mas ela mal vestida me incomoda. Então, o que é beleza e o que não é? Como encaro essa caretice que todo mundo resolveu assumir agora de última hora? Dá até vergonha de participar desse processo, nós que brigamos tanto pela democracia.
– Suas experiências recentes como diretor dos principais espetáculos de Mossoró, que não por acaso são referência em todo o País, lhe colocou em um patamar de muita responsabilidade. Você já produziu antes, era quem fazia todos os figurinos, esta nova missão lhe deu outra perspectiva, mudou você de alguma forma?
– Me deu mais responsabilidade. Eu poderia ser pedra, agora sou telhado. Não esperava que acontecesse tão rápido, também não almejava e não era a coisa que mais desejava no mundo. Estar envolvido em um espetáculo já me envaidece demasiado. Não precisa que eu seja o ator principal, o diretor. Mas isso tem um custo. Você vê pessoas lhe olhando pelo canto dos olhos, desenvolve uma inveja que não é saudável, o que me envergonha também. Eu só estou diretor, não comprei o espetáculo. Era bom que as pessoas entendessem isso. Me criou uma responsabilidade enorme. E, às vezes, penso que gostaria de estar em meu canto quietinho de figurinista, de ator coadjuvante.
– Os textos destes espetáculos (Chuva de Bala no País de Mossoró, Auto da Liberdade e Oratório de Santa Luzia) lhe satisfazem como diretor ou limitam, de alguma forma? Você pensou em mudar alguma coisa?
– Fizemos isso agora com o texto do Oratório. Não é que a dramaturgia de João Marcelino me limitasse, é que estava muito João Marcelino. Fazia 17 anos e precisava ser repensado. Então, eu trabalhei a dramaturgia e Erismar Cunha fez o texto, meio encomendado e fez lindamente. Eu adoraria que o texto do ‘Auto da Liberdade’ fosse repensado. É uma narrativa épica e atual, contada no presente. Se eu quiser montar o ‘Auto da Liberdade’ usando figurinos atuais, contemporâneos, eu posso fazer, porque ele conta agora. [O texto] poderia ser reescrito sem rima, porque a rima cansa. É um prazer também, mas já faz muito tempo e acho que precisa ser mudado.
– O teatro é repetição. Como lidar com isso sem deixar virar rotina e tirar o brilho?
– O mais bacana é lembrar que não é uma repetição. Essa é a técnica que eu uso. Frank Sinatra cantou “New York, New York” até morrer e cantava com o mesmo brilho, a mesma qualidade, a mesma dignidade. Não é e nunca vai ser a mesma coisa. Todo dia acontece uma coisa diferente, assim também é no ensaio. Pode ser o mesmo texto, a mesma música, a mesma marca, mas você descobre uma mão diferente, uma forma de falar diferente, então, assim, como o teatro tem essas descobertas ele nunca é repetitivo.
– É difícil afastar a intensidade do teatro do resto da vida?
– Não, é fácil. Eu, por exemplo, não consigo muito interpretar na vida real. Tem gente que me acha engraçado. Se for para fazer rir com ironia eu consigo, pra fazer um personagem popular eu tenho de ter um texto, então, eu treino para ser engraçado. Eu não me acho engraçado. Nós atores antigos temos a mania de chegarmos muito cedo no camarim, mas também sou o primeiro a sair. Eu, fazendo o prefeito [Rodolfo Fernandes], por exemplo, quando a plateia estava atravessando a Cidadela [após o espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró], eu já estava sentado tomando cerveja numa boa. Tem personagem que é meio complicado, mas tudo é questão de técnica. Por exemplo, eu fazia o César Bórgia, que era um personagem que exigia muito, então você demora alguns segundos para dissociar, mas não sou aquele ator que sofre depois que termina. Isso o Stanislavski [Constantin Stanislavski] já explicou a gente como fazer, é simples. É técnica! Não sou aquele ator que sai de cena morto de cansaço.
– Já sentiu medo de não ser aplaudido ou de receber alguma crítica?
– (Risos) Não sou metido não, mas confio muito no meu taco, entendeu? Acho que são os anos de experiência. A gente vai aprendendo como burilar o outro ser humano. Você se colocar no lugar do outro é muito bacana. Pensar no que o outro gostaria de ver, de entender. Isso facilita a forma de eu agradar. Eu sou inconsequente, pronto, não me preocupo se isso vai ou não funcionar. O trabalho que fazemos está sempre exposto, você pode ser vítima de aplausos ou de escárnio, porque aplauso também vitima.
– O teatro de Mossoró é um bom teatro?
– Nós temos grandes conhecedores de teatro. Eu poderia citar aqui um monte de gente: Nonato Santos, Augusto Pinto... Tem uns que não estão bacana, mas a grande maioria mesmo é muito bacana, são conhecedores. Agora, se não fazem direito é porque não querem, mas que sabem, sabem!
– O que é o teatro e o que é a vida?
– O teatro melhora a vida. A vida em si é muito sem graça. A única coisa que a vida sabe fazer melhor que a gente é tragédia. Você monta uma cena trágica e as pessoas dizem: “ah, tá, bonitinho”, aí, ali, um carro atropela uma pessoa e em um segundo se forma uma plateia imensa, todo mundo já sabe do que se trata, e isso a gente não sabe fazer. Mas, assim, o teatro melhora a vida, a arte melhora a vida, a arte não imita a vida, ela melhora a vida. Uma facada é feia na vida real, no teatro é linda.
– Em seus 54 anos, o que você viu da vida?
– Vi tanta coisa que eu preferia ser cego, surdo e mudo (risos). Mas, numa boa, vi mudanças bacanas, vi regressões. Por exemplo, eu era todo envaidecido porque participei das ‘Diretas Já’. Eu participei daquele comício. Nós brigamos para acabar com a Ditadura brasileira. Olha, eu nasci na época do Golpe Militar e aos 54 anos estou pagando toda a matéria de novo, não sei o que vai acontecer, mas estou pagando a matéria de novo. Não quero ter 10 com louvor, mas preferia que não acontecesse tudo de novo.

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