UM LORDE MOSSOROENSE



David Medeiros Leite é unanimidade quando se descreve uma boa pessoa. Mas isso é pouco diante de sua longa trajetória de serviços prestados à sociedade, assim como o seu desejo de ajudar pessoas a embarcarem no mundo da literatura e, quem sabe, se tornarem escritores respeitados como ele é.

            Quando David Leite chegou a Espanha, o gelo lhe doeu os ossos por dentro. A neve que cobria todos os campos no trajeto de Madrid à Salamanca, distante duzentos quilômetros, lhe remeteu imediatamente ao estado Potiguar. Lembrou das plantações de algodão e das salinas e essas imagens nunca mais saíram de sua cabeça.
            A ida ao país estrangeiro em 2006 para estudar, marcou profundamente a sua vida acadêmica e literária. Lá, fez contatos importantes, conheceu a literatura espanhola e se engajou em movimentos que lhe renderam a participação em várias antologias. A comparação entre a terra medieval de Salamanca, cuja universidade fundada em 1218 é a mais antiga daquele país e a oitava do mundo, seria impossível se não fosse a sensibilidade poética e a percepção de quem ama em demasia a sua terra.
            Eu sabia das incursões de David por suas distâncias graças às Cartas de Salamanca, publicadas periodicamente na revista Papangu, onde fomos contemporâneos cronistas. O livro mesmo só saiu em 2011e ainda assim veio cheio de lindas imagens.
            David de Medeiros Leite nasceu em Mossoró no dia 17 de junho de 1966. Caçula de 12 filhos de Hilda de Medeiros Leite, professora primária, e de Aldemar Duarte Leite, ex-combatente do Exército, costuma dizer que teve uma vida simples. Quando foi reformado como Sargento, devido ao acidente com um canhão, seu Aldemar voltou para Mossoró e adquiriu uma vacaria na Barrinha dos Duarte, na região do Carmo, zona rural de Mossoró, e é dessa simplicidade que David fala:
– Minha infância foi entre a Barrinha e a Av. Rio Branco. – Conta David, se referindo ao endereço onde mora sua mãe, hoje com 88 anos, localizado em frente à praça do antigo Fórum Desembargador Silveira Martins, separado por uma rua do Memorial da Resistência. Foi lá o nosso encontro, quer dizer, mais um, já que visitá-lo neste endereço é sempre bom negócio, visto que sempre tomamos um bom café com tapioca ofertados por suas irmãs Mailda e Ildete.
David começou a estudar no Instituto Alvorada, fez o primário no Eliseu Viana e o ensino médio no Abel Coelho. Por volta dos 18 para 19 anos, entrou na faculdade de Ciências Sociais, mas em 1984 quando começou a trabalhar de caixa no antigo Banorte, decidiu que queria fazer Administração, acreditando dar mais futuro.
Entrou no curso em 1988 e terminou em 1991. Suas previsões estavam certas, porque do Banorte foi trabalhar na parte administrativa do antigo Hospital Regional Tancredo Neves, hoje Tarcísio Maia, chegando a diretor administrativo. Em 1992, assumiu a gerência do Instituto Euvaldo Lodi (IEL) e no ano seguinte a direção do Abatedouro Frigorífico Industrial de Mossoró (AFIM), a convite do então prefeito Dix-huit Rosado.
Em 1994, casou-se com Maria Vilani Oliveira Dantas, nutricionista, com quem tem uma filha: Alice, hoje com 22 anos, estudante de medicina.
No ano seguinte, mudou-se para Natal para trabalhar na antiga Alimentar, empresa pública da Prefeitura de Natal. Ainda em 1995, resolveu realizar o sonho de cursar Direito, sendo aprovado no vestibular da UERN. No mesmo ano, assumiu a secretaria-adjunta da Agricultura do Estado, no governo Garibaldi Filho, a convite do ex-vereador Pedro Fernandes.
Três anos depois, o agropecuarista Bira Rocha, então presidente da Federação das Indústrias do RN (FIERN), o convido para assumir o departamento administrativo daquela instituição. Um tempo depois, voltou ao IEL, agora como superintendente.
Consta ainda em seu vasto currículo a direção administrativa do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), entre 2000 e 2002, a convite do desembargador Carlos Newton. Em 2003, por indicação da então governadora Wilma de Faria, assumiu a direção da Companhia de Processamento de Dados do RN (Datanorte). Paralelo a isso, foi aprovado no concurso para professor da UERN, voltando ao mesmo lugar onde estudou direito, agora para lecionar. Atualmente é pró-reitor de Recursos Humanos desta mesma instituição.
David não conseguiu explicar o que o levou a tamanha ascensão política. Apesar de ser parente do ex-senador Duarte Filho, que faleceu quando ele tinha apenas sete anos, diz não ter tido qualquer influência externa.  Mas é possível identificar dois atributos que lhe trouxeram tanto sucesso: a competência, pois não há outra explicação mais certa, e a cara de gente boa que lhe permite a circunstância de sempre está rodeado de bons amigos.
Se dependesse das posições políticas, talvez o nobre advogado não tivesse se movimentado muito, uma vez que, na juventude, foi membro do Partidão de Luís Carlos Preste, antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB).
            A literatura começa em sua vida por acaso, em 1992, publicando crônicas nos jornais O Mossoroense e Gazeta do Oeste. Assinante dominical da Folha de São Paulo, se encantou com ombudsman e com a coluna de Otto Lara Resende, leituras que lhe deram ânimo e fôlego para iniciar nas letras.
            Seu primeiro livro aconteceu em circunstância parecida. Trata-se da coletânea de artigos, dele e de outras personalidades de Mossoró, sobre Luís Lourival de Góis, antigo comunista oestano que só não foi injustiçado pela história graças à mobilização de gente como David Leite. Góis morreu no Rio de Janeiro durante o último congresso do Partidão, que depois foi transformado em PPS, e acabou sendo sepultado por lá mesmo. Para ajudar a família trazer seus restos mortais começou-se essa mobilização que durou dez anos.
            Quatro livros depois, outro acaso. Dirigindo para Natal, a certa altura do caminho, Vilani lhe perguntou o que era um soneto. Ele recitou alguns conhecidos, mas, não a convenceu. Então, decidiu escrever um, citando os versos para ela anotar em um papel. Depois de reler, gostou do que produziu, mostrou a amigos e começou a escrever poemas e guardar. A esse primeiro, deu o título de “Incerto caminhar” que, em 2009, se tornou título homônimo de seu primeiro livro de poemas premiado no II concurso de poesia em língua portuguesa da Universidade de Salamanca.
            Em 2005, em sociedade com o escritor e editor Clauder Arcanjo, criou a editora Sarau das Letras, cuja missão é ajudar escritores locais a publicar, a exemplo de Vingt-un Rosado, fundador da Coleção Mossoroense. A Sarau já publicou mais de 200 livros. Membro do Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP) e da Academia Mossoroense de Letras (AMOL), é um escritor respeitado e observado pela cena literária potiguar.

BOX:
De 2001 até aqui, David Medeiros Leite já publicou 14 livros:
Companheiro Góis – dez anos de saudades (Coleção Mossoroense, 2001);
Os Carmelitas de Mossoró – em coautoria com Gildson Bezerra e José Lima Dias Júnior – (Coleção Mossoroense, 2002);
Ombudsman Mossoroense (Sebo Vermelho, 2003);
Duarte Filho: exemplo de dignidade na vida e na política – em coautoria com Lupércio Luiz de Azevedo – (Sarau das Letras, 2005);
Incerto Caminhar (Sarau das Letras, 2009);
Cartas de Salamanca (Sarau das Letras, 2011);
Pressupuesto participativo em municipios brasileños: aspectos jurídicos y administrativos (Editora Académica Espanhola, 2012);
Casa das Lâmpadas (Sarau das Letras, 2013);
Mossoró e Tibau em versos: Antologia Poética – em coautoria com Edilson Segundo – (Sarau das Letras, 2014);
Ruminar-Ruminar (Sarau das Letras/Trilce Ediciones, 2015);
Sarau das Letras – entrevista com escritores – organização com Clauder Arcanjo (Sarau das Letras, 2015);
Rio do Fogo – em coautoria com Bruno Lacerda – (8 Editora/Sarau das Letras, 2017); Café&Poesia (Sarau das Letras, 2018);
Liga Operária Mossoroense –  em parceria com Edilson Segundo e Olivá Leite – (Coleção Mossoroense, 2018);
Mi Salamanca (Sarau das Letras/Trilce Ediciones, 2018).

            Depois de ouvir toda essa história, sentados à mesa da cozinha de dona Hilda, sua mãe, tomando café com leite e tapioca iniciamos nossa entrevista. Lá pelas tantas, os cães de suas irmãs começam a latir dentro de casa e ele, muito sereno ensaiou dizer: “os cães ladram, mas a caravana passa”, porque, segundo me contou depois ao telefone, ficaria mais poético. Porém, muito gentil, não quis interromper minhas perguntas que começaram sobre suas experiências e aprendizados na Europa.
            – O que a Europa lhe ensinou sobre o Brasil?
            – A Europa me fez ver que a democracia avança muito devido à Educação, apesar de a da Espanha ser apenas 10 anos mais velha que a nossa. E aqui, a nossa, apesar de alguns bons avanços políticos, temos problemas graves. Se eu não tivesse vivido lá, não teria tanta percepção, apesar de serem realidades históricas e culturais diferentes.
            – Você está sempre no espaço entre Mossoró e Natal, entre A Espanha e o Brasil. O que representam essas distâncias?
            – São reveladoras e boas. Se eu tivesse ficado somente em Mossoró, meu olhar, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista literário seria [limitado]. Apesar de termos hoje esses meios de comunicação, a internet e o mundo virtual, mas nada como viver outra realidade, como sentir outra realidade.
            – Existe distância entre as Cartas de Salamanca e essa poesia intimista e memorialista presente em seus livros de poemas?
            – Manoel Onofre diz, e temos de respeitá-lo, porque talvez seja a pessoa que mais estuda literatura potiguar; mais cuidadoso e sistemático na literatura crítica, que meu melhor livro é o Cartas de Salamanca. Ele disse: “David, você na crônica, e, principalmente, no Cartas de Salamanca, se saiu muito bem. Eu até recomendo as Cartas de Salamanca”, disse-me Manoel Onofre. Então, para mim é muito gratificante. E eu acho também, não sei se é porque ele fez este comentário, mas acho que me dou melhor em crônicas do que em poesia, mas insisto em fazer, aqui e acolá, poemas.
            – O que é preciso considerar entre a literatura e a vida prática?
            – A literatura é mais fácil que a vida prática (risos), que na literatura você navega, talvez, com mais facilidade, apesar de ter alguns problemas e alguns freios, né. Essa questão de gênero? Consideram crônica um gênero menor em relação à poesia, então aí você tem outros problemas. Mas eu acho que existe maior conforto em transitar pela literatura do que pela vida real, se fizermos este paralelo.
            – Quanto o Direito lhe ensinou sobre literatura?  
            – Digo muito aos alunos que vivi uma graduação que tinha muita amplitude, apesar de não fazer tanto tempo assim que me formei em Direito. Tínhamos uma formação mais humanista. Com o exame da OAB e os concursos, o curso se tornou muito tecnicista. Hoje sou uma voz, junto com alguns outros professores que luta por isso. Eu digo: “Olhe, você lute para passar na OAB, mas o Direito não é só fazer a graduação e passar na OAB”. Eu levo um conto de Machado de Assis, eu levo Drummond, eu levo Kafka para debater Direito e Literatura porque existe a conexão, existe este campo. Eu fico fazendo o que um professor meu, lá do doutorado disse: “nosso papel aqui é inquietar vocês e não é dar respostas, fazer esta provocação, neste sentido”. Eu faço isso.
            – Você está sempre em grupo e é resultado disso muitos projetos importantes, como a Sarau das Letras, editora constituída em parceria com o escritor Clauder Arcanjo e o Café & Cultura, criado por Ângela Gurgel e Fátima Feitosa, cuja participação sua é muito significativa. Por que essa necessidade de grupos?
            – Porque lutar em grupo é melhor do que lutar sozinho.
            – Existe em vocês, e me refiro também a Clauder, a ideia de que alguém precisava continuar o trabalho iniciado por Vingt-un Rosado, responsável pela Coleção Mossoroense, mesmo que fosse de maneira mais singela?
            – Sim. E literalmente discutimos isso. Porque, quando lançamos a Sarau ele (Vingt-un) era vivo e questionou: “Por quê?”. Tivemos conversas com Dr. Vingt-un sobre a Coleção Mossoroense que saiam sem ISBN, sem Ficha Catalográfica e Dr. Vingt-un, apesar de todos os méritos, dizia: “Não, não vamos nos preocupar com isso não, e tal”. E então eu disse: “Clauder, para termos esta visão técnica de editores, vamos ter de fomentar um selo”. E ele (Vingt-un) viu e perguntou: “Por quê? A Coleção não está aberta a vocês?”. E nós dissemos: “Não, Dr. Vingt-un, é só mais uma alternativa...”. Então eu disse que nós éramos de universidade e essas publicações eram muito importantes para contar, e tal. Aí ele disse “tá certo”. Mas também ele não tinha essa coisa de se importar não, além do que foi só uma coincidência que ele viu a Sarau nascendo.
            – Você algum dia traçou uma reta ou as coisas foram acontecendo?
            – Acho que foram acontecendo, foi um “Incerto caminhar” mesmo. Não tracei essa reta, esse planejamento, até porque eu tinha algumas dificuldades e algumas limitações.
            – Onde é o seu destino?
            – O meu destino é aqui na literatura potiguar, no meio universitário, até quando eu for atuante.
            – O que você viu da vida?
            – Vi que o homem é bom, é puro, mas esta mesma criatura tem comportamentos terríveis em relação a seu próximo. É o sentimento trágico da vida, como diz Ortega e Gasset. Até François Silvestre diz que deveríamos ter ficado no miolo da ignorância e ao estudar vamos percebendo questões na condição humana que espanta, que chocam.
            – O que você ainda espera ver da vida?
            – Nós lutamos por uma evolução. Existe ainda um egoísmo humano muito difícil de ser ultrapassado. O sentimento coletivo, o sentimento do bem-estar coletivo, é uma coisa muito difícil. Existe este egoísmo primário: “eu estando bem, o meu vizinho que se dane”. Lourival Góis dizia que lá na fábrica, em São Paulo, nos anos 40, antes de entrar no Partidão, tinha alguns integrantes do Partidão fazendo cotas para ajudar os operários doentes e então ele perguntou: “Comunismo é isso? Se for eu quero participar; é solidariedade?”, então a pessoa respondeu: “É também!”. Então, é este espírito de solidariedade, este espírito, como no cristianismo, de amor ao próximo. Eu acho que isso é um sonho que, por sinal, a tal sociedade moderna leva no contrapeso, leva o sujeito a ser mais individualista, mais só. Ele não quer dar a mão a ninguém. Eu acho que esse individualismo, essa vida sem preocupação com o outro – o sujeito come, dorme, tem seus bens e pouco importa que o outro esteja ali na rua, jogado, isso me inquieta. E pessoas que tiveram o privilégio de ter ensino superior, coisa e tal, e galgar certos cargos, muitas vezes têm uma visão humanitária muito retrógrada e isso é uma condição humana muito rudimentar.
            – “Essa terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal?”.
            – Eu posso dizer que tem hora que tenho esperança e tem hora que não. Eu vivo o tobogã, às vezes bem otimista, às vezes pessimista. A gente vê alguns retrocessos que, meu Deus! Na minha área, por exemplo, os últimos anos vivemos uma ampliação do ensino superior e, de repente, esse retrocesso nessa questão política. Então, vivemos um tobogã de esperança e desânimos.
            – Você se considera um velho comunista ou um comunista velho?
            – Um novo comunista. Eu estava distante e voltei.

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