CINEMA NO INTERIOR

A imagem pode conter: 1 pessoa, barba

Raildon Lucena quebra todos os paradigmas e limitantes e mostra com muito trabalho e parcerias como é possível fazer cinema e ganhar prêmios em pleno Seridó potiguar

Raildon Lucena me lembra muito um passarinho, dado o seu jeito simples, meio frágil e gentil. Mas a verdade é que internamente ele tem a força dos super-heróis que vencem um câncer e a coragem de empreender no meio do sertão com ideias incomuns.
O conheço há anos, até já perdi a conta. Mais de 10 anos, com certeza, e nos aproximamos mais quando todas as suas energias se concentraram para vencer um mieloma múltiplo que todos achavam que o venceria. Mas o cara não tem apenas a fisionomia parecida com Quentin Tarantino, ele tem dentro de si algo de Kill Bill e também uma grande história para contar.
Raildon Vieira de Lucena Valadares, Raildon Lucena ou simplesmente RV, nasceu em 30 de novembro de 1977 em Caicó. Filho da artesã Rita Vieira de Lucena e do empresário Nely Antônio Valadares de Souza, sempre teve uma vida simples. Estudou na Escola Estadual Monsenhor Walfredo Gurgel e no Colégio Diocesano Seridoense e cursou Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Fez MBA em Marketing Político e agora Marketing Digital e especialização em Cinema e Produção Audiovisual.
Suas pós-graduações marcam também parte das circunstâncias de como nos conhecemos. À época, ele era assessor de imprensa da Prefeitura de Janduís e eu editor de Estado do Jornal de Fato. O que tínhamos em comum era a revista Papangu, para onde escrevíamos. Eu sobre política e literatura, ele sobre cinema.
Sua paixão pela sétima arte começou nas sessões vespertinas de TV com os filmes de Jerry Lewis, passando pela era das locadoras de vídeo. Na faculdade surgiu o interesse pela crítica de cinema que ele continuou na Papangu e em um blog.
Sempre o vinculei a esta arte. Primeiro por aquela semelhança dele com Tarantino, depois porque ele me lembra um Smurf, aquele desenho do Pierre Culliford. Um homenzinho feliz e bondoso, mas que faz tudo funcionar a seu redor. Acho ainda que RV tem um pouco de Bob Esponja Calça Quadrada, de Stephen Hillenburg. Um bobo feliz com desapego de sentimentos ruins e uma autoestima que incomoda. Uma mistura confusa – considerando sua paixão pelo suspense e sua capacidade de concentração em coisas sérias – que talvez seja o segredo dessa vida.
O seu perfil é perfeito para os negócios, tanto que desde 2011 ele é sócio da agência de publicidade Referência que consegue se manter e inovar no mundo do marketing em pleno Seridó. Uma luta improvável que ele e seus colegas fazem funcionar com muita eficiência.
Mas que limite tem um homem que vence um câncer com otimismo? Não há barreiras para os que sonham os sonhos improváveis, como fazer cinema no chão de Caicó, usando criatividade e explorando as oportunidades. Nos últimos dois anos são três curtas-metragens reconhecidos em festivais e alguns prêmios na bagagem: Domerina (2016); Sonho de Oiticica (2017) e Caicó, Terra de Poesia (2018).
Os filmes foram exibidos no Festival Internacional de Baía Formosa (2016, 2017 e 2018), Festival Off Câmera da Cracóvia – Polônia (2017 e 2018), Curta Suzano/SP (2018), Festival Olhar Independente de Curtas – UFRN (2018) e Mostra de Gostoso (2018). Os troféus começaram a chegar neste ano. Ele e seu grupo – formado pela galera da Referência e outros parceiros – levaram o Prêmio Místika de Finalização, na Mostra de Gostoso (2018); Melhor Curta do RN – Festival Internacional de Baía Formosa (2018) e Prêmio Pérolas do RN (2018).
Ainda neste ano, Raildon idealizou e dirigiu o Curta Caicó, primeiro festival de cinema daquela região, arrastando nomes importantes como a atriz Titina Medeiros e César Ferrário, além de cineastas de São Paulo, Pernambuco e Paraíba. Ao todo, foram exibidos 413 filmes.
Naturalmente, coube a ele e a seu grupo levantar a bandeira da interiorização do cinema. “A tecnologia permitiu que o cinema se tornasse uma arte acessível. O interior é rico em narrativas que merecem ser adaptadas para a linguagem audiovisual. Sem contar que é uma cadeia produtiva importante que pode e deve ser estimulada em nossa região”, destacou.
Para falar com ele sobre este assunto, em meio a tantas outras novidades que sempre surgem em suas fala, comecei perguntando o básico. Ou seja, em que momento percebeu que era possível produzir cinema sem a estrutura das grandes produtoras especializadas nisso?
– O que antes parecia difícil, hoje está na palma da nossa mão. É possível encontrar tutoriais sobre linguagem audiovisual, a tecnologia é bem mais acessível e a vontade de narrar nossas próprias histórias é imensa. Fazer cinema é deixar de ser um espectador que só recebe informações e que passa a produzir filmes com nossas paisagens, nossa cultura, nossa gente e nossas peculiaridades.
– Quais os desafios de produzir cinema no interior do Estado, em uma região que nem sala de cinema possui?
– Muitos festivais acontecem em cidades que não possuem salas de cinema. E na verdade a proposta é bem diferente do dito cinema comercial. Festivais como o Curta Caicó são vitrines para o cinema brasileiro independente e dão visibilidade a realizadores que fazem cinema na garra mesmo. E as histórias que temos acesso nesses festivais são incríveis. Produzir cinema no interior gera vários desafios, desde a formação de público até a busca por locais de exibição. Mas se há uma característica marcante em quem faz o audiovisual é a paixão pelo que se faz. E aos poucos estamos conseguindo motivar outras pessoas sobre a importância do cinema e que hoje é possível produzir filmes.
– Qual é a realidade do cinema alternativo no interior do Brasil?
– Não é uma realidade fácil. O que se percebe nas discussões que surgem nesses festivais é a necessidade de apoio institucional para fomentar a cadeia produtiva do audiovisual. Muita gente hoje faz cinema de guerrilha e daí surgem filmes incríveis. Cada novo festival que surge é uma janela para escoar essas produções e promover a interação entre profissionais de várias áreas e daí surgem boas parcerias para outros filmes. Então, falta apoio. Sobra vontade e desejo de fazer.
– Você sempre foi apaixonado por Tarantino, o que você aprendeu com ele?
– Tarantino é um diretor contemporâneo que sabe brincar com as referências do cinema. E produzir filmes é uma oportunidade e tanto para homenagear cenas e filmes icônicos que nos encantaram. Tarantino foi balconista de locadora de vídeo e seus filmes são um exercício para os cinéfilos. Mas, o bom mesmo é se debruçar sobre a história do cinema a e as várias escolas que surgiram desde os seus primórdios até os dias de hoje. Toda arte é o reflexo do seu tempo e conhecer cada estilo é essencial para quem produz, escreve ou é espectador. Hoje, além de ter uma admiração por diretores clássicos como Fellini, Bergman, Glauber Rocha, tenho uma admiração ainda maior pelas pessoas que fazem cinema alternativo e que são distantes da grande mídia.
– As novas tecnologias contribuem com a experiência do cinema, na produção e recepção?
– São essenciais, pois antes era uma arte inacessível, com equipamentos caríssimos e falta de profissionais para a realização dos filmes. Hoje o quadro é bem diferente. E fazer cinema é mais do que possível. Os festivais de cinema ajudam a popularizar essas produções e permitem que públicos que nunca sequer viram um filme na telona possam provar desse encanto.
– Os festivais são os únicos lugares do cinema curto e alternativo? Como expandir isso para outros campos e alcançar novos públicos?
– Participar desses festivais abre novas possibilidades. Em São Miguel do Gostoso conheci distribuidoras que participam desses festivais para conhecer os filmes que estão circulando. Há várias possibilidades de veiculação, do Canal Brasil ao streaming. O grande público ainda não tem acesso a muita coisa boa que está sendo produzida. Mas, sou otimista e acredito que é questão de tempo para que surjam novas possibilidades para alcançar novos públicos.
– Existe um projeto de longa em seus desejos ou em alguma gaveta de sua vida?
– Tudo tem seu tempo. Comecei a circular nos festivais de cinema em 2016. Dois anos depois consegui realizar um festival na minha cidade, Caicó. Aliás, estamos fazendo um trabalho intenso de benchmarking para conhecer os festivais, adquirir novos conhecimentos e fazer networking. Em 2019, vamos realizar oficinas com jovens que tenham interesse em produzir cinema. Esses curtas serão exibidos no nosso festival que será realizado em junho do próximo ano. Queremos criar um coletivo de pessoas interessadas em produzir cinema no interior, em especial no Seridó. Já estou escrevendo roteiros para curtas-metragens e, sim, futuramente pretendo filmar longas. Na hora certa, sei que tudo vai se encaminhar para isso.
– O que é fazer cinema?
– É ter a possibilidade de utilizar a poesia da imagem e do som para contar as nossas próprias narrativas. É poder fomentar uma arte importante para a cadeia produtiva. É ter a chance de estimular um tipo de arte em uma região que sequer possui salas de cinema. É gratificante e apaixonante. Creio eu que com nossa insistência estamos quebrando várias barreiras. E o bom é saber que no Seridó tem muita gente fazendo cinema, em cidades como Jardim do Seridó, Parelhas, Currais Novos, Florânia, Lagoa Nova conheço grandes profissionais que também estão produzindo. Tenho a convicção que a experiência de Caicó (e nossa insistência) é importante para dar visibilidade ao nosso Seridó, enquanto região que também produz cinema.
Como eu disse, no começo desta conversa, o otimismo de Raildon Lucena é um trunfo natural de sua trajetória. É esse o impulsionador de sua vida e a chave que vai lhe abrindo as portas e garantindo que todas as ideias, por mais distantes que pareçam estar, se materializem no tempo certo que as coisas devem ter.

Comentários

Postagens mais visitadas